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O Direito e sua
nova dimensão
C
onsidere a seguinte situação hipotética: umcasal é convidado por amigos para um jantar
especial, sem as crianças. Convite aceito, uma babá é contratada para cuidar do flho de
6 anos na noite do evento. Contudo, uma emergência impede a moça de comparecer à
residência na noite emquestão, fato que comunicaminutos antes do horário estabelecido para
sua chegada. O casal se recusa a declinar o compromisso e considera, pela primeira vez, deixar
o garotinho sozinho em casa. A mãe, preocupada com a segurança, leva o garoto à porta de
entrada. Apontandoparaa chavena fechadura, elaexplicaqueaportadeverápermanecer tran-
cada por dentro, não podendo ser aberta em hipótese alguma. Para garantir que o garoto não
se esqueça da ordem, ela cola na porta uma enorme cartolina comos dizeres: “Proibido abrir a
porta” e, abaixo, estabelece uma consequência caso ele descumpra a regra.
A criança promete que não irá desobedecer e os pais vão para o referido evento. Ocorre
que amatriarca não se deu conta que esquecera ligado o ferro de passar que havia utilizado
antes de sair. Algum tempo se passa, quando então o aparelho, superaquecido, dá início a
um incêndio, que rapidamente toma grandes proporções. De imediato, a criança corre em
direção à porta de entrada, mas antes de tocar a maçaneta, lê a mensagem escrita na car-
tolina: “Proibido abrir a porta”. O casal ao chegar, se depara com a residência reduzida a
cinzas. O flho, sem um arranhão, os aguarda amparado pelos bombeiros. O ato de abrir a
porta e fugir do fogo salvou-lhe a vida.
Eis a pergunta: O flho, ao abrir a porta, violou a norma imposta pelamãe ou não?
Muitos profssionais do Direito, ao serem questionados com a mesma pergunta, afrmam que
sim, ou sejam, são categóricos em dizer que a norma foi violada. Quanto à punição, a maioria
concorda que aplicá-la seria injusto. A história traduz claramente a ideia principal do livro “A
QuartaDimensãodoDireito”, deminhaautoria, lançado recentemente. Aobra foi pensadapara
auxiliar estudantes eprofssionais na suaprincipal atividade: a interpretação jurídica. Porém, seu
conteúdo, inédito, propõe uma mudança signifcativa da visão tradicional acerca do Direito e
sua compreensão, questionandoa segurança jurídicaembasadana literalidadeda lei, aqual tem
sido o nosso “porto seguro”.
Ao longo da minha vida profssional, me deparei com a difculdade dos profssionais em inter-
pretar o Direito. Com o tempo, vi que esse é um problema grave no Brasil. Entre outras muitas
coisas, o livro trata da difculdade de comunicação entre legislador e intérprete, propondo uma
nova abordagemno que diz respeito ao pensamento jurídico. A interpretação doDireito é colo-
cadasobumaóticadiversa, trazendoao leitor refexõesà respeitodoreal signifcadonormativo,
e ponderando que, para que o conteúdo textual ganhe efetivo caráter de norma, é necessário
que seja decodifcado pelo intérprete.
A interpretação enunciativa, conforme lecionada emmuitas faculdades, ancora toda a seguran-
ça jurídica à lei codifcada. Noentanto,muitas vezes, norma e enunciado confundem-se, eos pa-
péis de legislador e intérprete fcamobscuros. É preciso perceber que o Direito temdois planos
distintos, porém, interligados, quais sejam: o enunciativo e o normativo. O plano enunciativo é
criado pelo legislador, sendo que o que ele consegue fazer é apenas projetar um “dever ser”
(norma) na formadeumenunciado,mas a realidade é sempremuitomais complexa e amplado
que a que ele consegue apreender. Já o plano normativo é uma criação pessoal do intérprete, a
partir do plano enunciativo. Não há que se falar propriamente emnorma jurídica antes da inter-
pretação. O que existe antes da interpretação é simplesmente o texto do enunciado legal, por
vezes confundido com a norma. Ninguém interpreta a norma, pelo simples fato de que isto é
impossível. Ao contrário do que se pensa, a norma não é o objeto da interpretação, ela é o pro-
duto fnal da atividade interpretativa. Da mesma forma não se pode dizer que o pão é o objeto
da atividade do padeiro, mas sim que o pão é o produto fnal da atividade dele. O que é objeto
da atividade do padeiro são os ingredientes: trigo, fermento, leite, etc.
Na história supracitada, se o garotinho tivesse respeitado a proibição prevista expressamente
no texto do enunciado, ele teria violado a “norma” projetada pela sua mãe na forma de um
enunciado. Compreendendo que o objetivo de sua mãe,
ao proibir que a porta fosse aberta, era proteger sua vida,
ele deliberadamente produziu uma norma aparentemente
distinta do enunciado, mas absolutamente afnada com a
ordem jurídicaestabelecida. Assim, há sempreduasnormas
envolvidas no processo interpretativo: a projetada pelo le-
gislador e a defnida pelo intérprete, daí a grande confusão.
Para interpretar oDireito não basta saber ler umenunciado
e precisomuitomais do que isso. É fundamental, no entan-
to, não confundir o enunciado coma norma.
Por fm, tenho dito que o Direito vive uma grave crise exis-
tencial, pois ainda não sabemos responder a elementar
pergunta: o que é legalidade? As respostas até aqui dadas a
questão são insatisfatórias.
Por Renato Geraldo Mendes*
Renato Geraldo Mendes é
jurista e autor da obra “A
Quarta Dimensão do Direito,
Curitiba: Zênite, 2013”