Coronavírus escancara precarização do trabalho de entregadores de delivery
Apesar do negacionismo inconsequente de certos setores da sociedade, é fato indiscutível que o Brasil e o mundo enfrentam, talvez, a maior crise de saúde pública da história recente. Não à toa, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria MS nº 188, em 3 de fevereiro de 2020, declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (Covid-19).
Diante disso, os estados brasileiros também decretaram regime de quarentena no contexto da pandemia anunciada, determinando urgente isolamento social, a partir, por exemplo, do fechamento de escolas, shopping centers, cinemas, bem como da proibição ao atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais, ao consumo local em bares, restaurantes, dentre outros elementos.
O isolamento é a maneira eficaz de controle da disseminação do novo vírus. Contudo, por diversos motivos, nem todas as pessoas têm podido cumprir a determinação de isolamento social, a exemplo dos profissionais entregadores de alimentos e mercadorias vinculados a diversos aplicativos do gênero.
No caso do Estado de São Paulo, por exemplo, o Decreto 64.881, de 22 de março de 2020, que determinou a quarentena no Estado, em seu artigo 2º, I, estabeleceu a suspensão do "consumo local em bares, restaurantes, padarias e supermercados, sem prejuízo dos serviços de entrega".
Isto é, os serviços de delivery têm sido considerados como essenciais e, portanto, excepcionados da política de isolamento social. O trabalho prestado pelos entregadores de aplicativos, que já estavam incorporados na dinâmica das grandes cidades, contribui durante a quarentena para que a população permaneça em casa e, ainda, possibilita, mesmo que de maneira parcial, a manutenção das atividades econômicas de inúmeros estabelecimentos que precisaram funcionar com portas fechadas.
Contudo, a atual crise escancarou a precarização do trabalho dos profissionais vinculados às empresas de aplicativos de entregas, que, tidos como trabalhadores autônomos, têm arcado ou com o ônus de aderirem à quarentena e ficarem sem qualquer remuneração ou com o peso de exporem sua própria saúde a alto risco, já que não contam com qualquer medida de proteção financiada pelas empresas a que são informalmente vinculados.
Atento a essa realidade, o Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou, no último dia 04 de abril, duas Ações Civis Públicas (processos nº 1000405-68.2020.5.02.0056 e 1000396-28.2020.5.02.0082) por meio das quais requereu, em caráter de urgência, a condenação das empresas Rappi e iFood à implementação de políticas de segurança aos entregadores e ao pagamento de auxílio financeiro aos profissionais que precisarem abandonar as suas atividades, seja por fazerem parte de grupo de risco ou por estarem suspeitos ou efetivamente contaminados pelo Covid-19.
Na ação, o MPT reuniu depoimentos de entregadores que denunciam que as empresas não vêm fornecendo informações acerca dos cuidados pessoais que os entregadores devem adotar, bem como que não disponibilizam álcool gel e máscaras gratuitamente, nem tampouco dispõem de locais para higienização das mãos e dos instrumentos de trabalho dos entregadores. Estas pessoas têm trabalhado de forma totalmente desprotegida.
O MPT também mencionou informações e materiais veiculados na mídia, tal como "prints" de mensagens encaminhados por entregadores que demonstram que, enquanto governos tomavam medidas de isolamento social, a iFood, por exemplo, disparava mensagens incentivando entregadores a saírem mais, anunciando o aumento da demanda em razão da quarenta como uma grande oportunidade. Isto é, segundo consta na Ação, os aplicativos têm lucrado com o coronavírus expondo os trabalhadores a risco de contaminação.
As Ações Civis Públicas, distribuídas perante as 56ª e 82ª Varas do Trabalho de São Paulo (SP), foram apreciadas pelo Juiz do Trabalho plantonista do Fórum, que deferiu medida de urgência requerida pelo MPT. A decisão condenou as empresas, em resumo, a difundirem informações qualificadas aos trabalhadores quanto às formas de prevenção ao contágio do coronavírus durante as suas atividades de entrega; a fornecerem equipamentos de proteção, tais como luvas, máscaras e álcool gel; providenciarem espaços para a higienização de veículos, mochilas que transportam as mercadorias, capacetes e jaquetas (uniformes); e garantirem assistência financeira aos trabalhadores que integram grupo de alto risco, que demandem necessário distanciamento social ou afastados por suspeita ou efetiva contaminação pelo novo coronavírus.
Segundo a decisão, a assistência financeira em referência deve ter por parâmetro a média dos valores diários pagos nos 15 dias imediatamente anteriores à data da publicação da sentença, garantido, no mínimo, o pagamento de valor equivalente ao salário mínimo mensal. Ou seja, as empresas deveriam pagar assistência financeira que mantenha a média remuneratória recebida pelo entregador ou, então, no valor do salário mínimo, conforme o que for mais vantajoso ao trabalhador.
Contudo, a Ifood impetrou mandado de segurança em face da decisão e requereu a suspensão das obrigações de fazer acima listadas, apontando como um dos argumentos o fato de que não mantém vínculo de emprego com os entregadores, de modo que a Justiça do Trabalho sequer seria competente para analisar o pleito formulado. Ademais, a empresa alegou que já constituiu fundo de um milhão de reais para ajudar entregadores que estiverem contaminados pelo coronavírus.
O pedido de suspensão da decisão liminar de primeira instância foi concedido pela desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, Dóris Ribeiro Torres. Para a relatora, "não estamos diante do empregador definido pelo artigo 2o, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A empresa impetrante não deu causa e tampouco exerce qualquer atividade correlata ao fato gerador da pandemia, mostrando-se inadequado impor-lhe a realização de medidas de extrema complexidade, em prazo tão exíguo e sem lhe conferir o direito ao contraditório".
Com isso, a decisão liminar que obrigava a iFood ao pagamento de assistência financeira caiu por terra, mas, salvo melhor juízo, ainda é vigente em relação à Rappi, visto que não se tem notícias a respeito de qualquer medida judicial tomada por esta última para afastar a decisão.
Em relação ao caso do mandado de segurança impetrado pela iFood, a ausência de reconhecimento de vínculo empregatício foi um dos principais motivos para a suspensão da decisão que obrigava a empresa a adotar às medidas de proteção.
Ora, a Constituição da República estabelece, em seu artigo 7º, XXII, que os trabalhadores têm direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. Ocorre que, no caso destes entregadores, o arcabouço normativo de proteção à saúde é letra-morta em razão da falácia de que a relação havida entre os motoristas e entregadores com as empresas que gerenciam as plataformas digitais é de mera parceria, de modo que o trabalhador seria o único responsável por sua própria segurança.
É importante registrar que as empresas de aplicativos, ao contrário do entendimento da decisão do TRT-2, gozam de inúmeros mecanismos de controle dos serviços prestados pelos entregadores e, por isso, se enquadram na figura de empregador, à luz dos artigos 2º e 3º da CLT.
As empresas oferecem incentivos financeiros para aumentar a produtividade e as horas de trabalho dos profissionais vinculados, com a finalidade de maximizar seus próprios lucros. O site The Intercept, em matéria publicada em 23/03/2020, apresentou denúncia de entregadores que afirmam que "em um dia de temporal com alagamentos no Rio de Janeiro, por exemplo, a Rappi chegou a pagar R$ 15 extras a seus entregadores."
Foi diante de circunstâncias como essas que, em recente decisão nos autos de nº 1001345-92.2019.5.02.0371, a 1ª Vara do Trabalho de Mogi da Cruzes-SP reconheceu o vínculo de emprego entre um entregador e a iFood. Na hipótese, o magistrado trabalhista ressaltou a existência de subordinação jurídica entre o trabalhador e a empresa de aplicativo.
A sentença, a partir da análise de prova testemunhal e documental, registrou que a Ifood monitora todas as entregas, determina unilateralmente um tempo fixo para que elas ocorram, têm a possibilidade de bloquear o entregador na hipótese de não cumprimento do prazo de entrega, bem como dispõe de todos os dados das corridas, tempos de pausa do trabalhador, o percentual de entregas aceitas e rejeitadas, os valores recebidos e o tempo efetivamente on-line do entregador. Isso significa que tais empresas se comportam como empregadoras ao controlar a prestação dos serviços dos entregadores, diante da nítida subordinação jurídica destes profissionais, mas afastam-se dessa figura quando se debatem as obrigações daí decorrentes.
A ausência de proteção jurídica e empregatícia encoraja as empresas a abusarem de seu poder econômico e a explorarem essa mão de obra sem qualquer medida de segurança, mesmo em situações de extremo risco à vida dos trabalhadores, como é o caso do trabalho durante o surto do coronavírus. O agravante é que a precarização vai além da pandemia e se manifesta no cotidiano desse serviço que, a cada dia mais, tem sido considerado essencial à população. É papel do Poder Judiciário, portanto, proteger estes trabalhadores.
Por Hugo Fonseca, advogado especialista em Direito do Trabalho