Covid-19: Os contratos, a incerteza os desafios para a manutenção das empresas e a exceção da ruína

Vivemos um momento dramático como sociedade. Os enormes desafios na esfera da saúde se fazem acompanhar de preocupações sociais, econômicas e, consequentemente jurídicas. Aqui discute-se um instituto até o momento pouco aplicado no direito brasileiro, que consiste na exceção da ruína.

A elaboração de contratos deve atentar, entre outros aspectos, à alocação de riscos, como reforça o Código Civil, em seu recente art. 421-A, inc. II. A despeito do que as partes combinarem, a incerteza acompanha os negócios, ora com resultados positivos, ora com efeitos desastrosos.

Em relação ao incerto, o direito brasileiro adota o princípio da conservação do contrato. Seu significado, como se sabe, não consiste na impossibilidade de alterações. Diversamente, o princípio assinala a preservação do negócio em sua máxima medida possível, ainda quando adequações possam ser necessárias.

Por meio de diversos institutos, cada qual com seus específicos requisitos, o direito contratual brasileiro lida com fatos inesperados. Em apertada síntese, tais institutos podem ensejar hipóteses de extinção contratual, mitigar os efeitos do descumprimento ou promover a abertura para a revisão contratual, por exemplo, em relação às prestações excessivamente onerosas. Esses temas já foram analisados em interessantíssimos textos dos colegas do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. A flexibilização dos contratos surge, desse modo, como uma maneira de preservar os negócios, ainda que com concessões.Contratos longos e o desafio do tempo - "As coisas mudam no devagar depressa dos tempos".

Entre os mecanismos admitidos para lidar com riscos futuros, está a possibilidade de exigência de garantia quando há perspectivas de a parte contrária não cumprir o acordado. Trata-se da exceção da garantia, também chamada de exceção da inseguridade. Identifica-se aqui um sinal de que o pactuado deve se harmonizar à dinâmica das relações.Com efeito, na interpretação contratual é fundamental levar em conta o passado (as negociações preliminares, o contexto), o presente (os termos pactuados, os "considerandos") e o futuro. Nessa linha, como ressalta Galgano, o efeito do tempo em relação aos contratos torna ainda mais rica a discussão.

Na onerosidade excessiva, por exemplo, admite-se, tanto no direito brasileiro, quanto no italiano, que o contrato seja reajustado tendo em conta acontecimentos extraordinários e imprevisíveis que gerem desequilíbrio excessivo nas prestações (Código Civil brasileiro, arts. 478 e ss; Código Civil italiano, art. 1467). A respeito, é interessante a advertência na norma do direito italiano de que se deve levar em conta o risco normal esperado.

Como observam, Eduardo Nunes de Souza e Rodrigo da Guia Silva, em recente coluna (link), em linhas gerais o Covid-19 parece caminhar mais para a impossibilidade do que para a onerosidade excessiva.

Em seu clássico texto, "Obrigação como processo", Clóvis do Couto e Silva destaca também a necessidade de se atentar ao limite do sacrifício (Opfegrenze), que nem pode ser usado como uma escusa para todo descumprimento, nem pode ser desprezado. A razoabilidade da prestação, com efeito, é critério para justificar o descumprimento ou mesmo afastar a mora. A doutrina reiteradamente lembra o exemplo do cantor que se recusa a realizar sua apresentação com seu filho doente.

"Viver é uma questão de rasgar-se e remendar-se."

Como se pode observar, a matéria envolve discussões tormentosas. Entre os caminhos possíveis, é interessante analisar a exceção da ruína, pouco lembrada no direito brasileiro. Trata-se de promover o ajuste do contrato de longa duração para manter o equilíbrio, sem que haja um fato superveniente singular, afinal, os negócios podem se deteriorar por uma soma de fatores, ao invés de um evento terrível exclusivo.

Na jurisprudência do STJ dos últimos anos, há recorrente recurso à exceção da ruína, no entanto, a absoluta maioria das decisões trata da saúde suplementar (dos contratos de planos de saúde). Ilustrativamente, no REsp 1.479.420/SP decidiu-se que:

"Não há como preservar indefinidamente a sistemática contratual original se verificada a exceção da ruína, sobretudo se comprovadas a ausência de má-fé, a razoabilidade das adaptações e a inexistência de vantagem exagerada de uma das partes em detrimento da outra, sendo premente a alteração do modelo de custeio do plano de saúde para manter o equilíbrio econômico-contratual e a sua continuidade".

Na ratio decidendi dos precedentes da corte superior sobre a exceção da ruína, extrai-se que para afastar o "colapso" é possível rever as bases do pacto, preenchidas as exigências de razoabilidade do novo ajuste e inexistência de vantagem exagerada. A maneira de estabelecer o "novo" acordo não está totalmente aclarada. Os julgados se referem "ao estipulante e a operadora redesenharem o sistema".

Sob o viés contemporâneo, a exceção da ruína presta-se, igualmente, a reforçar o dever de negociação das partes, o qual se extrai também da boa-fé objetiva, como ensinam, Claudia Lima Marques, Anderson Schreiber e Carlos Eduardo Pianovisky.

A exceção da ruína sinaliza uma via diversa para o reequilíbrio contratual. Não se se confunde com a impossibilidade temporária ou definitiva de cumprimento do objeto, a frustação da finalidade, a irrazoabilidade de exigir-se o cumprimento por força de fatos supervenientes ou ainda a onerosidade excessiva de uma prestação específica. Também não consiste, a rigor, em uma situação em que as circunstâncias presentes na ocasião do contrato sofreram alterações, como na teoria da base objetiva.

Como denota a jurisprudência do STJ, a exceção da ruína está em linha com a uma análise que não considera apenas o caso sob exame, mas as demais relações contratuais estabelecidas pelo devedor. Como adverte Menezes Cordeiro, na exceção da ruína do devedor, é preciso levar em conta os contratos similares, de maneira que as consequências de manter o devedor obrigado aos termos originalmente estabelecidos serão potencialmente desastrosas para as duas partes. Ao credor porque nada receberá, ao devedor pelo seu risco ruína.

Colocar o sacrifício ou esforço do devedor em questão, assim como levar em conta uma visão pragmática e holística – que leva em conta as múltiplas relações do devedor, são ferramentas de grande importância para enfrentarmos, em um futuro que já começou, os efeitos do coronavírus.

Para encerrar, vale resgatar as frases lapidares de Guimarães Rosa utilizadas nos títulos das seções deste breve texto: "Quem elegeu a busca, não pode recusar a travessia"; é tempo de desafios a todos, o que demanda esforços redobrados, inclusive na proteção da pessoa humana. O tempo é incerto, e a velocidade das mudanças também. "As coisas mudam no devagar depressa dos tempos".

Enfim, nos negócios, sobretudo de longa duração, é preciso atentar a dinâmica dos fatos, e as partes têm o dever de colaborar "na alegria e na tristeza, na saúde e doença. Daí porque nos lembra Guimarães Rosa “Viver é uma questão de rasgar-se e remendar-se".

Por Gabriel Schulman é membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont), doutor em Direito pela UERJ, mestre em Direito pela UFPR. Professor da Universidade Positivo, onde coordena a pós-graduação em Direito Empresarial.