Aqui quem manda sou... “ninguém”!
O governo federal vem, cada vem mais, atenuando as restrições em razão da COVID-19. Basta observar o Decreto nº 10.344, de 11/5/2020, que adicionou salões de beleza, barbearias e academias de esporte como atividades essenciais. De outro lado, governos estaduais como São Paulo e Rio de Janeiro estão reforçando a quarentena por períodos adicionais e outros, como Paraná e Santa Catarina, vêm gradativamente abrindo o comércio.
Isso sem falar na infinidade de determinações esboçadas no âmbito municipal.
Tudo isso referendado pelo Supremo Tribunal Federal, que havia decidido na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.341, que os estados e municípios podem adotar medidas sobre isolamento, quarentena, restrição excepcional e temporária em matéria de saúde, ainda que em descompasso com a União.
O empresário brasileiro, nesse tiroteio do Poder Público, insere-se em nítida insegurança jurídica e instabilidade. Coloque-se no lugar de uma empresa que atua em âmbito nacional. Na babel da emergência do coronavírus, precisa atualizar seu mapa de atuação a cada instante. Na prática, precisa verificar em quais estados e municípios podem atuar e, pior, muitas vezes é severamente multado por “órgãos técnicos de fiscalização”.
E agora, inclusive, com a Medida Provisória nº 966 de 13/5/2020, os agentes públicos que vêm gerando esse caos para a população estão imunes nas esferas civil e administrativa quando embasados em “opinião técnica”. Sabe-se que qualquer estudo mal estruturado pode ser tendencioso àqueles que o demandam. Em verdade, há “opiniões técnicas” para qualquer gosto, inclusive nas ciências médicas.
Tudo isso confronta muitos dogmas que constam de muitos livros de Direito - inclusive alguns assinados por ministros do Supremo Tribunal Federal - que evidenciam o federalismo cooperativo brasileiro, em que o Estado, permeado pelos compromissos de bem-estar social, deve buscar a isonomia material e atuação conjunta para erradicação das grandes desigualdades. União, estados e municípios deveriam atuar em harmonia.
Isso sem falar no Ministério Público que vem, há algum tempo, emitindo recomendações e abrindo inquéritos para apurar condutas que julga irregulares. Agências reguladoras e órgãos de fiscalização também seguem, muitas vezes, caminhos opostos e contraditórios.
E agora o Poder Judiciário resolveu entrar na discussão, determinando “lockdown” em regiões do Ceará, Maranhão e Pernambuco, não bastasse a confusão gerada no Poder Executivo.
Mas, afinal, o que diz a Constituição sobre tudo isso?
Na norma que organiza e estrutura o Estado - artigo 24 - está expresso de forma direta que compete à União, aos estados e ao Distrito Federal, legislar sobre produção e consumo, bem como previdência social, proteção e defesa da saúde. Isso significa que a competência da União se limita a estabelecer normas gerais, enquanto as medidas em concreto podem ser estabelecidas por estados e municípios.
Cuidar da saúde e assistência pública é obrigação comum entre os entes, mas sempre em harmonia. São de índole cooperativa, visando o equilíbrio do desenvolvimento e o bem-estar em âmbito nacional. Nessa teoria constitucional, o papel central e de coordenação deveria ser exercido pela União.
Na prática, porém, existe um desdém e uma disputa política evidente entre os entes federados. E se não há cooperação entre os entes, não há federação cooperativa.
Assim, a população vive em uma “terra de ninguém”, na qual as pessoas que ocupam os cargos públicos ganham mais holofotes e notoriedade do que a instituição que representa. Aquilo que se afirma é contraditório àquilo que se faz; o que se faz é diferente do que se divulga; e o que se divulga é diverso daquilo que se legislou.
Fica nítido nesta emergência que o Poder Público, que já patinava em um cenário ordinário, está perdido em meio a um cenário de excepcionalidade. Ao cidadão sério, trabalhador e empreendedor, resta a cautela, a resiliência e a esperança de que a ciência restabeleça um ambiente de normalidade, já que o Poder Público não consegue seguir sequer as premissas mais básicas da nossa Constituição.
Por Ricardo Marfori Sampaio e Kristian Rodrigo Pscheidt, advogados