O desafio de garantir a segurança jurídica no atual contexto

Situações como a que estamos vivendo em razão da pandemia causada pelo Covid-19 devem ser encaradas como um desafio para o Brasil demonstrar que é, verdadeiramente, um Estado de Direito, ou seja, baseado em regras e princípios, previstos em lei e até mesmo na Constituição Federal, e que tais princípios e regras deverão prevalecer mesmo em situações atípicas, afinal, é no próprio sistema que devemos encontrar as saídas para as nossas mazelas e não fora dele.

Estamos no momento de demonstrar aos nossos cidadãos, pessoas comuns e empreendedores, bem como a investidores, nacionais e estrangeiros, que já manifestam desânimo em realizar os tão necessários investimentos, que não vivemos em um estado de exceção e que existe segurança jurídica no Brasil, pois depende-se dela para que antigos contratos sejam livremente repactuados e que futuros negócios sejam celebrados, dando origem a novos empreendimentos e empregos, tudo isso viabilizado em um ambiente estável de concessão de crédito.

Mais do que palavras ao vento, a segurança jurídica tem guarida no princípio da legalidade, bem como na preservação do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa Julgada previstos no artigo 5º da Constituição Federal e protegidos como cláusula pétrea pelo artigo 60, § 4º, e, mesmo no interesse de se tentar assegurar os igualmente importantes e constitucionais direitos sociais, previstos no artigo 6º da Constituição Federal ou de mitigar os impactos decorrentes da pandemia causada pelo Covid-19, legisladores e por juízes não poderiam atropelá-los.

Infelizmente não é o que se vê acontecendo.

Não são raras as recentes situações em que juízes decidem por matérias que extrapolam a sua competência, como por exemplo nos casos em que o juízo da recuperação judicial suspende a cobrança da taxa de energia da recuperanda, mesmo quando tal crédito não estiver sujeito a este procedimento; ou reconhecem direitos em afronta a disposições legais expressas, como vem ocorrendo na recepção dos pedidos de recuperação judicial por associações, não incluídas nos critérios subjetivos legais; ou com as revisões de planos judiciais já aprovados em assembleia (ato jurídico perfeito) e homologados em juízo (coisa julgada), tudo sob justificativa de obediência à Recomendação n. 63 do CNJ, de constitucionalidade questionável.

Sem contar os casos em são proferidas decisões judiciais, permitindo a revisão e extinção de negócios jurídicos e a suspensão de obrigações contratuais, sem que sejam obedecidos os critérios claros e bem definidos no artigo 478 do Código Civil que permite a resolução de contratos de longa duração para os casos  de onerosidade excessiva, bem como no art. 317, que prevê a possibilidade de revisão contratual calcada na busca do reequilíbrio da relação entre as partes. Ambos os artigos já tiveram a sua interpretação pacificada pela nossa jurisprudência ao longo dos anos, mas parecem ser ignorados pelas novas decisões.

Na mesma toada do crescimento do ativismo judicial, seguem as propostas intervencionistas do legislativo com os então chamados projetos de lei emergenciais.

Dentre os inúmeros projetos intervencionistas apresentados, destacamos o PL 1112/2020 que pretende reduzir em 30% o valor dos aluguéis e impossibilitar o proprietário de cobrar juros e multa por atraso de pagamento, além de não poder retomar seu imóvel, pouco importando se estão atendidos os critérios de revisão e extinção contratual previstos em lei ou, se até mesmo este proprietário utiliza esta renda para a sua subsistência ou para honrar compromissos financeiros assumidos com outros brasileiros, o que poderia gerar uma enxurrada de inadimplementos em efeito cascata. Sem contar no efeito danoso subsequente aos cidadãos brasileiros que pretenderem alugar um imóvel e verificarem que aumento nos preços dos aluguéis, em decorrência deste novo custo imposto aos proprietários.

Na Câmara dos deputados tramitam o PL nº 1119/20 e o PL nº 1108/20, o primeiro prevê a redução de 30% dos valores das mensalidades escolares e o segundo obriga a “renegociação” direta entre as partes, prevendo a redução das mensalidades em faixas predeterminadas, mas proíbe a redução de salários. Na mesma linha há o PL nº 1163/20 do Senado Federal, tendência legislativa verificada nos Estados do Pará, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais e Pernambuco e no Distrito Federal. Se de um lado, as escolas mais eficientes, que remuneram melhor seus profissionais e oferecem mensalidades reduzidas, correrão o risco de fechar as portas e, de outro, os pais de alunos que não tiveram redução na sua renda, serão beneficiados mesmo quando não deveriam.

É um festival de cumprimentos com o chapéu alheio, afinal o bolso do próximo é sempre mais generoso.

Se a Constituição garante determinados direitos sociais aos cidadãos e se o Estado Brasileiro reconhece que estamos em Estado de Calamidade, cabe a toda a sociedade arcar com esta conta através do recolhimento dos tributos. Se a atual carga tributária é excessiva e regressiva e o custo do Estado é demasiado, cabe aos integrantes do Governo e do Congresso Nacional enfrentarem estes problemas sem impor injustamente os ônus a determinada parcela da população e criar benefícios a quem não deveria.

Por fim, até mesmo o bem elaborado PL 1397/2020, que institui medidas emergenciais e de caráter transitório na legislação falimentar, recém aprovado pela Câmara dos Deputados, também merece maior reflexão, afinal, de acordo este PL, empresas em recuperação judicial e que já tenham tidos seus planos aprovados pelos credores poderão apresentar novos planos de pagamento incluindo créditos posteriores ao pedido e, ainda, não terão que cumprir as obrigações previstas nos planos já homologados por 120 dias, o que nos parece uma afronta ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada e ao direito adquirido dos credores. 

Por mais nobres que sejam os motivos e por melhores que sejam as intenções, o ativismo judicial e as propostas intervencionistas, sob o aspecto jurídico, são constitucionalmente questionáveis e, sob o aspecto econômico, podem gerar distorções e prejuízos ainda maiores ao imporem a uma parcela isolada da população o injusto ônus de arcar com as consequências da pandemia, quando este ônus deveria ser suportado por todos, além de gerar um desestimulo para a realização de novos negócios e para a vinda de investimentos estrangeiros, colocando em risco a retomada da atividade econômica e a geração de novos empregos e, assim, prolongando a saída da crise.

Por  Renato Scardoa e Maria Fabiana Seoane Dominguez Sant’ana, advogados e  doutorandos em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Advogada Maria Fabiana Seoane Dominguez Sant’ana - Foto: Divulgação
Advogada Maria Fabiana Seoane Dominguez Sant’ana - Foto: Divulgação