Lucro não é ilegal, mesmo na pandemia
A pandemia do coronavírus tornou-se um campo importante de observação sobre o jogo de interesses socioeconômicos que se camufla em debates sobre ética, moral, cidadania, responsabilidade e função social das empresas. Instrumentalizada por interesses políticos, a agenda de discussões sobre o tema blinda os responsáveis pela desassistência do sistema de saúde público e por uma descabida indução à depressão econômica. As mortes de milhares de profissionais de saúde, de quase 100 mil pessoas, o fechamento de dezenas de milhares de empresas, o desemprego de 9 milhões de cidadãos, ainda não estão contextualizadas e compreendidas de modo adequado e, provavelmente, nem haja interesse nisso.
Afinal, o contexto induz à inversão sobre o que realmente importa. Válido é atacar alvos que possam prender a atenção da opinião pública, livrando o outro dos holofotes que escancariam seu papel na crise sanitária econômica que devasta nosso país.
Um exemplo é discutir sobre a legalidade de se aferir lucro na comercialização da vacina contra o COVID19.
No Brasil, a legislação que regula o setor farmacêutico é a Lei nº 10.742/2003 e as resoluções da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos – CEMED, vinculada ao Governo Federal. Porém sobre preço de vacinas, não há nenhuma disposição impondo comercialização a preço de custo.
Sob a ótica nacional não há lei que proíba que as farmacêuticas tenham lucro com a comercialização das vacinas. Aliás esse é justamente o negócio de tal segmento empresarial que investe milhões em pesquisas e desenvolvimento de medicações, justamente para cumprir seu objeto social.
Como se tem visto, nem em situações onde houve subsídio de verba governamental para auxílio de pesquisas, há obrigatoriedade de venda a preço de custo por parte das farmacêuticas. Nesses casos, a regra é aquela prevista no caso a caso em cada um dos acordos comerciais feitos entre governos e empresas farmacêuticas.
As farmacêuticas têm o que poderíamos denominar “autonomia parcial” na fixação de valores. Entretanto, o lucro não é ilegal, mesmo em situações de pandemia. Tanto que nem mesmo a Lei Federal nº 13.979/20 que trata das medidas de enfrentamento da pandemia, que prevê requisição de bens e serviços à empresas para o combate da Covid19, não impõe aplicação de preço de custo aos produtos.
Atualmente, está em tramite na Comissão Externa de Enfrentamento à Covid19 da Câmara dos Deputados um pacote de medidas legislativas cujo objeto é o tabelamento de preços de itens essenciais ao combate da Covid19, como por exemplo; máscaras e álcool em gel, porém sobre vacinas não há nada concreto.
Importante destacar que qualquer medida governamental fixando valores de custo para vacinas contra o Covid19, pode ser discutida judicialmente, como já ocorrera no passado quando a CEMED tentou fixar obrigação aos hospitais para cobrarem medicação de seus pacientes à preço de custo e foi repelida por decisão judicial.
Não se pode perder de vista que segundo o artigo 196 da Constituição Federal, a saúde é direito de todos e dever do Estado.
Logo, a promoção de políticas públicas de saúde é dever do estado como ocorre diuturnamente na promoção de outras campanhas de vacinação nacional como da poliomielite, sarampo e outras.
Portanto, a atribuição de margem no preço das vacinas por parte das farmacêuticas, não fere o direito à saúde da população, pois cabe ao Estado, a aquisição das mesmas e distribuição gratuita à população.
Ao invés de se preocuparem com o preço da vacina no âmbito particular, melhor caberia ser cobrado porque na grande maioria das cidades do Brasil o melhor equipamento hospitalar são ambulâncias para levar os doentes graves para bem longe. Das pessoas indagarem onde seus dirigentes políticos se internam quando ficam doentes. Porque recursos públicos são usados para estádios de futebol ao invés de hospitais. Porque a preocupação com a saúde só ganha espaço quando ocorre um problema internacional como a pandemia, quando em verdade, há anos, milhares de pessoas perdem suas vidas nos corredores dos hospitais onde falta tudo?
Por Fernando Bianchi, advogado especialista em Direito da Saúde – Universidade de Coimbra- PT