Impasse do STJ dificulta defesa dos bens de sócios e administradores em caso de dívidas fiscais
O Código de Processo de 2015 criou o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ) para disciplinar a responsabilização dos sócios e administradores do Réu, o devedor originário, nos casos de abusos ou fraudes.
Embora, a desconsideração da personalidade jurídica seja uma medida extrema, se tornou excessivamente corriqueira no cotidiano forense. Assim, o IDPJ foi concebido para permitir o exercício do contraditório e ampla defesa ao terceiro que se pretenda responsabilizar por dívida de outrem previamente à inclusão no polo do processo, assegurando a citação do terceiro, apresentação de defesa e produção de provas, trâmite durante o qual o processo é suspenso (artigo 134, § 3º, CPC).
No âmbito tributário, a controvérsia consiste em saber se o procedimento é aplicável às execuções fiscais e em quais hipóteses.
Na Corte Superior do país, que cabe uniformizar a interpretação das leis federais, longe de apresentar um direcionamento sobre o entendimento que prevalecerá, tem posicionamentos diametralmente opostos adotados pelas duas Turmas que compõe a Primeira Seção do Tribunal, de Direito Público.
Neste contexto, temos que a Segunda Turma do STJ defende que não cabe a instauração do IDPJ em execuções fiscais. Para os Ministros da Segunda Turma da Corte Superior, o incidente não se compatibiliza com a Lei de Execuções Fiscais e com o Código Tributário Nacional, porque não haveria fundamento jurídico para a obrigatoriedade de instauração nas execuções fiscais. De acordo com os Ministros, “quando o CPC/15 pretendeu que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica fosse aplicado a um microssistema, o Código foi expresso” (REsp nº 1.786.311/PR), citando como exemplo, o artigo 1.062, que trata dos juizados especiais.
Para o colegiado, na hipótese dos artigos 124, 133 e 135, do CTN, que tratam da responsabilidade solidária quanto houver interesse comum, por sucessão ou pessoal (dos sócios administradores), não aplicar-se-ia o IDPJ por haver fundamento legal para a responsabilização.
Como consequente lógico, conclui que “seria contraditório afastar [o IDPJ] para atingir os sócios administradores (art. 135, III, do CTN), mas exigi-la para mirar pessoas jurídicas que constituem grupos econômicos para blindar o patrimônio comum, sendo que nas duas hipóteses há responsabilidade por atuação irregular, em descumprimento das obrigações tributárias, não havendo que se falar em desconsideração da personalidade jurídica, mas sim de imputação de responsabilidade tributária pessoal e direta pelo ilícito”.
Por sua vez, a primeira Turma do STJ admite o IDPJ em algumas hipóteses, reconhecendo que o procedimento é aplicável às execuções fiscais para atingir pessoa não identificada no lançamento do tributo e procedimento administrativo de constituição, bem como para verificar a existência de grupo econômico, em que necessário provar o abuso de personalidade, desvio de finalidade e confusão patrimonial, na forma do artigo 50, do Código Civil.
Por outro lado, não se exigiria o IDPJ quando o nome do responsável conste na certidão de dívida ativa, após o regular procedimento administrativo (artigo 134, § 2º do CPC) e para os sócios, gerentes, administradores e representantes, por força de atos praticados com excesso de poderes, infração de lei e estatuto, ou de liquidação da sociedade, em consonância aos artigos 134 e 135, do CTN.
Por ora, não há expectativa de pacificação da discussão pelo STJ. Seja porque nenhum recurso foi afetado ao rito dos recursos repetitivos – cujo entendimentos seria aplicado a todos os Tribunais. Seja porque até o momento nenhum dos Embargos de Divergência que levariam à uniformização do entendimento pela Primeira Seção não foram conhecidos.
Enquanto não há uniformização da jurisprudência, os Tribunais seguem proferindo seus posicionamentos. Assim, a questão acaba de ser decidida pelo Órgão Especial do TRF da 3ª Região, em São Paulo, no julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas definindo o entendimento a ser adotado no âmbito do Tribunal.
Em sessão de julgamento de 10/02/21, restou definido que será necessária a instauração do incidente para atingir o patrimônio de terceiros cujos nomes não estejam incluídos na certidão de dívida ativa e se pretenda responsabilizar em decorrência de:
1) confusão patrimonial;
2) dissolução irregular;
3) formação de grupo econômico;
4) abuso de direito, excesso de poderes ou infração à lei, contrato ou ao estatuto social (arts. 135, I, II e III, do CTN);
5) interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal, desde que não incluídas na CDA.
O entendimento diverge em parte da Primeira Turma do STJ, que entende que desconsideração nas hipóteses do artigo 135, do CTN não depende da instauração do IDPJ.
Em nossa avaliação, o cabimento do IDPJ nas execuções fiscais é inquestionável. O processo de execução fiscal é regido por lei própria (Lei nº 6.830/80), que prevê expressamente a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil. Além disso, o CPC estipulou o cabimento do incidente para as execuções fundadas em títulos extrajudiciais, como são as execuções fiscais.
O cerne da discussão resvala no fato de o Código Tributário Nacional, enquanto norma de direito material, estipular hipóteses de responsabilidade solidária, por sucessão e pessoal (artigos 124, 133, 134 e 135).
Dentre as linhas de interpretação, merece destaque o entendimento de parte dos Desembargadores do TRF da 3ª Região, que parece mais acertado, quanto à aplicabilidade do IDPJ em quaisquer hipóteses.
Isso porque o IDPJ é instituto de natureza meramente processual, sem qualquer incompatibilidade com as normas de direito material. É um meio para alcançar um fim. A disciplina da responsabilidade do CTN ou em outros dispositivos dizem respeito ao próprio direito, não ao meio de alcançá-lo.
Ou seja, a Lei estipula quais pessoas físicas ou jurídicas poderão ter seu patrimônio atingido em virtude da dívida de outro. Esse fator, contudo, não parece suficiente para justificar o afastamento do procedimento previsto no Código Processual para alcançar esse fim. Ao dizer que o sócio pode ser responsabilizado pela dívida da empresa em determinada circunstância, não parece ter sido a intenção do CTN admitir que isso seja feito sem a observância aos princípios de nosso ordenamento, como o contraditório e a ampla defesa. Exatamente esse aprimoramento visa ser alcançado com o IDPJ.
Em outras palavras, como o incidente teria natureza meramente processual, seria o procedimento viável para quaisquer hipóteses de responsabilização de terceiros, inclusive as previstas nas normas de direito civil e tributário (artigos 50, do CC e 133, 134 e 135, do CTN).
* Dr Marcio Miranda Maia é advogado e os doutores Ruy Fernando Cortes de Campos e Daniela Silva Alves são advogados no mesmo escritório que é especializado em Direito Empresarial e Tributário.