Poder de polícia e violação dos Direitos Fundamentais tratados em evento na OAB Paraná
XX Congresso Paranaense de Direito Administrativo, promovido pelo IPDA, aconteceu entre os dias 27 e 30 de agosto, em Curitiba
A partir do regime jurídico dos direitos fundamentais, quais seriam os limites para a implementação de medidas administrativas decorrentes do poder de polícia?A questão abriu os debates do oitavo painel do XX Congresso Paranaense de Direito Administrativo, que tratou do tema “Gestão Pública, Poder de Polícia e violação dos Direitos Fundamentais”. O evento foi organizado pelo Instituto Paranaense de Direito Administrativo - IPDA, entre os dias 27 de 30 de agosto, na sede da OAB Paraná. A mediação foi feita por Cibele Fernandes Dias e a relatoria ficou a cargo de Solange Faria. As considerações foram apresentadas pelos professores Daniel Ferreira, Daniel Müller Martins, Mateus Bertoncini e Paulo Ricardo Schier.
O professor Daniel Ferreira afirmou que falar em direitos fundamentais também refere à dimensão dos direitos, sejam individuais ou coletivos, homogêneos ou difusos. Em décadas, sanções e infrações não deram conta de assustar aquele que não garante a função social da propriedade e da empresa. “A pessoa só se empodera e se garante como pessoa tendo liberdade, com a mínima garantia de satisfação do que lhe é inerente, intimidade, privacidade, não sofrer assédio. Fazer o que gosta, como gosta, onde gosta”, observou. Num cenário do século XXI isso não é possível se visualizar. “Para um empreendedor, para a empresa garantir sua função social deve, no mínimo, garantir paridade de acesso”, acentuou. Para ele, “as medidas administrativas talvez não se refiram efetivamente a pensar em infrações ou sanções, mas em não tolher a liberdade. Sou a favor de extinguir o poder de polícia e trabalhar com fomento. O comportamento desejável é o de não discriminação”.
Limites da lei
O professor Mateus Bertoncini afirmou que o poder de polícia deve ater-se aos limites da lei. “Se não houver lei, o poder de polícia deve ser exercitado de maneira eficaz e proporcional na limitação dos direitos fundamentais”, observou. Lembrou que o Estado brasileiro entrou em crise e nesse modelo de estado de bem estar social, o poder de polícia não apenas limita direitos individuais (liberdade e propriedade), mas, também, por intermédio de medidas positivas, implementa direitos fundamentais.
De acordo com ele, esse estado de bem-estar social entrou em crise e as medidas adotadas o tornaram um estado subsidiário, baseado em privatizações, repasse de serviços públicos para a iniciativa privada, desregulamentação. Com isso, deixa, na prática, de existir e de funcionar como uma entidade implementadora de direitos fundamentais. Bertoncini indagou onde está o poder de polícia em situações como as queimadas na Amazônia, trabalho escravo, desmoronamentos de prédios no Rio de Janeiro, e colocou que o maior limite desse momento em relação aos direitos fundamentais diz respeito à capacidade de o estado dar conta dessa tarefa. “É por intermédio do poder de polícia que temos a limitação de direitos fundamentais, permitindo um convívio social sadio, mas também a implementações dos direitos fundamentais prestacionais”, acentuou.
Para Bertoncini a dificuldade desse estado reside em de um lado garantir os direitos fundamentais e, de outro, fiscalizar a sua implementação de maneira que o convívio em sociedade se torne solidário, possível, melhor, bom e justo para todos. “Hoje não há como adotar o velho conceito de poder de polícia do estado liberal. Destaco o professor Marçal Justen Filho que conceitua o poder de polícia como a competência para disciplinar o exercício da autonomia privada para realização dos direitos fundamentais e da democracia, segundo os princípios da legalidade e da proporcionalidade”. E salientou que o poder de polícia tem hoje como objeto não apenas a preservação da ordem pública, mas a preservação e implementação dos direitos fundamentais e da democracia.
Dupla perspectiva
Daniel Mueller Martins entende que não se pode considerar o poder de polícia como um instituto sempre caminhando para o desuso ou tentando encampá-lo entre outras categorias. Citou uma afirmação da professora Odete Medauar, publicada em 1995, como premissa de análise. “Se a noção do poder de polícia provoca em alguns uma impressão mais ou menos consciente de desconfiança e reticência, no seu paradoxo de limitadora de liberdade com o fim de assegurar a própria liberdade, aí justamente está a razão pela qual seu estudo deve ser impulsionado”. Ele entende que essa realidade persiste, ainda que o poder de polícia seja alvo de uma série de críticas em relação ao sua conformação atual pelas mudanças e evolução por se tratar de instituto de condicionamento de direitos individuais.
“Os direitos fundamentais nessa perspectiva do poder de polícia têm uma dupla perspectiva, ou seja, da liberdade num sentido individual a fim de assegurar a liberdade num sentido coletivo. Então, os direitos fundamentais servindo como elemento de limitação da atuação do estado na perspectiva da liberdade como objeto do poder de polícia, mas também deverão estimular o estado a legitimar as liberdades públicas, como elemento finalístico do poder de polícia, levando em conta situação concretas”. Sublinhou que “quando se está diante de uma situação de restrição de liberdade geral, se está diante de uma restrição muito mais intensa do que a restrição a liberdades específicas”.
O professor Paulo Schier destacou que o poder de polícia é um instituto que traz uma marca com duas faces: um lado de restrição e de limitação de direitos fundamentais, e de outro essa restrição que só se justifica a partir da necessidade de tutela do interesse público (perspectiva tradicional) ou em uma perspectiva vinculada com a proteção dos direitos fundamentais (roupagem mais nova). “O poder de polícia apenas se justifica pelos direitos fundamentais, limitando-os e restringindo-os para tutelá-los”, analisou.
Legalidade e isonomia
“No mundo do Direito Constitucional para entender a discussão dos limites do poder de polícia temos que levar em consideração que a articulação da teoria dos direitos fundamentais com o debate da teoria do direito administrativo é muito intensa.” De acordo com o professor, falar de limites do poder de polícia a partir do direito constitucional implica “reconhecer existência de limites formais (legalidade e isonomia) e materiais (justificação constitucional abstrata e concreta das restrições)”, pontuou.
Para Schier, só se pode restringir um direito fundamental se tiver por justificativa a necessidade de se tutelar outro direito fundamental. Daí falar-se em motivo para deflagrar o exercício do poder de polícia. “Deve-se ter muito cuidado com a utilização deste instrumento para não se desvirtuar de modo a legitimar um estado de polícia. Se nos ativermos ao motivo, é muito fácil vincular apenas à legalidade. Na teoria constitucional deve haver justificativa constitucional concreta da restrição, ou seja, motivação do ato administrativo. E, nesse ponto, a maior parte das distorções que temos no exercício do poder de polícia diz respeito à motivação”, explicou.
Quanto à implementação de sanções administrativas para efetivar uma administração pública voltada à realização dos direitos fundamentais, Mateus Bertoncini não concorda. “Vivemos um momento especial no Brasil no qual a administração pública se mostra frágil, inchada e cara, e ineficaz. Ela não consegue exercer a contento esse poder de polícia de contenção dos comportamentos individuais que são lesivos à coletividade. Assisto ao mau funcionamento dos serviços na área do poder de polícia, são muitas distorções: um excesso de poder de polícia para coisas insignificantes e a ausência em situações nas quais a presença do estado é indispensável”, ponderou.
Colocou que as sanções administrativas acabaram perdendo a força coercitiva e preventiva. O estado de bem-estar social hoje se mostra como uma estrutura incapaz de dar conta da sua tarefa, e precisamos buscar novas formas de solução de conflitos. “Hoje há muitas medidas na própria Constituição Federal que vão muito além das sanções administrativa, para correção de comportamentos individuais visando a garantia dos direitos fundamentais”.
Daniel Ferreira destacou que não adianta atrelar comportamentos proibidos à ameaça de prisão ou discutir matéria ambiental atrelando a sanções administrativas. “A perspectiva sancionatória criminal ou administrativa tem menos importância, pois assegurar o cumprimento das garantias e direitos fundamentais está relacionado com cultura e não com ameaças de prisão. O que precisa é mudar as pessoas, o direito não faz milagre. Tem que começar em casa”.
Discurso sério
Para o professor Paulo Schier, o poder de polícia pode sim desempenhar um papel de modificação da sociedade, quando bem utilizado. “Em relação ao poder de polícia vivemos um momento delicado. Ao mesmo tempo, se percebe que se quer deslegitimar o estado e legitimar um discurso de privatização e transferência de atividades do estado para a iniciativa privada.” Segundo ele, “a partir do momento em que se fala que o poder de polícia não funciona, mas as atividades públicas vêm sendo repassadas para a iniciativa privada, o estado não vai mais fiscalizar? Se há um discurso sério em que se sustente a transferência de atividades estatais para a iniciativa privada, levar a sério ao poder de polícia é levar a sério as agências reguladoras, que desempenham poder de polícia. O poder de polícia em um estado privatizador se faz necessário para a realização dos direitos fundamentais. Acredito que o momento em que vivemos não parece ser de democracia. O poder de polícia é uma arma, uma distorção”, concluiu.
De acordo com Daniel Müller, “se partirmos da premissa de que falar de sanções no sentido clássico, repressivo, se a palavra implementação estaria aqui colocada para traduzir o aumento do arsenal sancionatório, a minha resposta é negativa. A sanção eminentemente repressiva não colabora com a efetivação voltada à realização dos direitos fundamentais. Pensando em sanções estritamente repressivas, estas por si só não contribuem para a efetivação”.