Edson Vidal

Leitura amena de domingo

Para esquecer as agruras da pandemia vou contar nesta crônica dois fatos do cotidiano forense, por coincidência ambos acontecidos na década de 1.960, para retratar o lado pitoresco da vida daqueles que vestiram togas e usaram becas. Na época o interior do Paraná tinha poucos trechos de estradas asfaltadas, as cidades estavam em formação sendo que umas tinham o agito do progresso movido principalmente pelo café que era o verdadeiro ouro verde  que fazia do norte do estado a região mais próspera; no sul a erva mate, a produção de hortigranjeiro eram riquezas produzidas por colonos que trabalhavam de sol a sol; no oeste a extração da madeira e no centro uma pecuária ainda insipiente. 

E o Paraná era a terra de todas as gentes, nacionalidades, religiões e culturas de todo o mundo. Quem vivenciou aquela época participou diretamente do progresso ou pelo menos testemunhou a evolução econômica de um estado que hoje caminha com as próprias pernas. Não lembro bem se o primeiro fato aconteceu na Comarca de Santo Antônio da Platina mas sei com certeza que o Juiz de Direito era o  dr. Antônio Domingos Ramina, hoje desembargador aposentado e um dos mais destacados Magistrados da história do Judiciário paranaense. 

Fomos colegas no extinto Tribunal de Alçada e depois no Tribunal de Justiça e hoje, atuamos como voluntários na condição de Mediadores de processos em grau de recurso no âmbito do TJ. Homem lhano, educado e culto é um exemplo de Magistrado. Vamos ao episódio. Certa tarde quando o dr. Ramina estava despachando em seu gabinete de trabalho foi interrompido pelo Oficial de Justiça:


- Doutor, chegou uma mulher chorando copiosamente e quer falar com o senhor ...
- Faça ela entrar .
A  mulher aos soluços entrou, caiu de joelhos e suplicou:
- Juiz! Juiz! Aconteceu uma desgraça !!
Preocupado com a cena e receoso que poderia ter havido uma tragédia familiar , o dr. Ramina pediu que a mesma levantasse e contasse o que tinha acontecido. A mulher levantou e disse:
- O senhor sabe : eu acertei a milhar no jogo do bicho e o “seu” Garcindo o “banqueiro” não quer me pagar!!
O Juiz ficou atônito e a mulher prosseguiu:
- Não posso ficar no prejuízo, tenho dois filhos pequenos para dar de comer!
“Santa ingenuidade”, pensou o Magistrado e depois de ponderar bem a situação, “decidiu”:
- Minha senhora, saia daqui imediatamente e vá correndo falar com o “seu” Garcindo ...
- E o que eu vou dizer para ele? - quis saber a apostadora.
- A senhora diga que conversou comigo e eu mandei que ele pagasse direitinho a aposta, caso contrário ele vai se ver com o Juiz! Vá, vá rápido!

A mulher nem agradeceu e saiu correndo do fórum e nunca mais apareceu.E até hoje o Des. Ramina não sabe o final do imbróglio. Se a aposta foi ou não paga ou alguém explicou à mulher que jogo do bicho é Contravenção Penal e que ela poderia ter sido presa quando reclamou para o Juiz.

E o segundo episódio? Ah, este aconteceu na Comarca de São Mateus do Sul quando era Juiz de Direito o saudoso dr. Clotário Portugal Neto, meu amigo do coração. O Promotor de Justiça dr. Caio Quadros estava de licença para tratamento de saúde e eu que era o Promotor Substituto da Secção Judiciária da Lapa, fui designado pelo então Procurador-geral de Justiça Prof. Ary Florêncio Guimarães para fazer um júri da comarca. Sem conhecer o processo cheguei na cidade de São Mateus duas horas antes da sessão do Tribunal do Júri. No fórum fui falar com o dr. Clotário que estava preocupado porque eu tinha acabado de chegar e o processo era complexo e de repercussão na região. Era um homicídio qualificado. 

Na rápida conversa que tivemos nasceu uma empatia entre nós . Mais preocupado então ele sugeriu que eu pedisse adiamento do Júri. Eu agradeci toda a sua atenção e preocupação e disse-lhe:

- Não se preocupe. Tenho uma hora para ler os autos do processo e daí nos veremos no julgamento.


Fui para o gabinete do Promotor e fiquei estudando o processo. Na hora marcada para começar o Júri eu estava sentado na tribuna do Ministério Público. O advogado de defesa foi o saudoso dr. Edson Scheram.


Quando o dr. Clotário me concedeu a palavra eu prontamente li o libelo-crime acusatório, falei quase duas hora, esmiucei o suficiente a prova dos autos, expliquei sobre a legítima defesa própria e pedi a absolvição do réu. O Conselho de Sentenças e o grande público presente no plenário ficou perplexo com o meu pedido de absolvição. O Juiz esboçou um pequeno sorriso olhando satisfeito em minha direção.


Os trabalhos prosseguiram com o advogado de defesa reforçando todos os ângulos de minha fundamentação. E no final os Jurados absolveram o acusado por unanimidade. Depois da leitura da sentença absolutória o dr. Clotário agradeceu a todos pelo trabalho em prol da Justiça e não se contendo, apontou seu dedo em minha direção e disse a viva voz:


- Eta, caboclinho bom!


E todos os presentes não disfarçaram seus sorrisos. Hoje eu sinto falta da convivência deste Juiz, depois Desembargador, do qual tenho gratas recordações e saudades ...


“Quem não tem histórias para contar não viveu ou ficou em uma redoma. Todos os profissionais tem episódios que foram protagonistas ou testemunhas. Porque faz parte do cotidiano errar, acertar, cair, levantar, aprender, ensinar, levar a vida sem peso na consciência e quando passar deixar para trás rastros para ser lembrado.”


Edson Vidal Pinto

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