O trânsito, a educação
e a incompetência
S
omosmal-educadose incompetentes, eonossotrânsitoéprovadessaafr-
mação.Seestamosapé, corremosoriscopermanentedesermosatropela-
dos atravessandoa rua,mesmo tendoapreferência, ouna calçada, porque
omeio-fonão é capaz de segurar umautomóvel desgovernado. Se estamos no
carro, não conseguimos mudar de uma pista para a outra, porque o motorista
ao lado se sente ofendido com nossa intenção de entrar na sua frente. Em situ-
ações nas quais qualquer cidadão minimamente educado pisaria no freio, nós
buzinamos. Buzinamos para xingar, reclamar, desabafar, dar bronca nos outros
motoristas... Mas não saímos pela rua gritando com os outros se notamos que
fzeramalgoerrado. Afnal, seriacoisadegentemal educada, onde já seviu fazer
escândalo por aí?
No trânsito somos, além de intolerantes, donos da verdade. Se alguém erra na
nossa frente,merece abuzina. Claroque abuzinanão incomoda sóaquelemise-
rável que me impediu a passagem: Incomoda também o comerciante que está
ao lado; opedestreda calçadade trás, quequasemorredo coraçãoachandoque
estápara ser atropelado; oestudantenoquintoandar doprédiovizinho, quenão
consegue se concentrar e; o empregado no décimo andar do prédio da frente,
que não pode trabalhar em paz porque a buzina não permite. Hospitais então?
Azar de quemestá internado.
Para nós, tudo issoé secundário – naqueles raros casos que lembramos que exis-
tem terceiros. O importante é gritar com quem não conhecemos, no meio da
rua, para todomundover.Ogritodo ser humanoéuma faltadeeducação. É feio
gritar com os outros, aprendemos quando crianças. No carro, contudo, a edu-
cação não vale. O grito do carro é a buzina e ela está autorizada. Buzinar é in-
fração de trânsito, mas a nossa infração não existe, só a do outro. O outro não é
alguémdigno de respeito, é umobstáculo a ser removido. A rua é nossa, não nos
incomodem. Tratamos o espaço público como se fosse privado. Falta educação
para compreender, como se sabe desde a tradição grega, que aquilo que pode-
mos fazer no ambiente privado não podemos repetir no ambiente público. Se eu
quiser gritar nomeu quarto fechado, semproblemas. Se somos mal educados e,
por isso, não conseguimos viver civilizadamente, somos incompetentes enquan-
to cidadãos. Não temos a competência cidadã necessária para não enganarmos,
não roubarmos no troco, não fazermos gato na rede elétrica, não comprarmos
aparelho de TV a cabo pirata, não roubarmos a vaga do defciente...
Enfm, para não aceitarmos que a nossa bênção é a desgraça alheia, naquele “se
darbememcimadooutro”queé tãoprópriode todosnós. E, de repente, oTribu-
nal de Justiça (TJ) do Paraná decide que aURBS não pode fscalizar o trânsito. De
uma hora para outra, não temos mais quem controle o trânsito que já é, por na-
tureza, descontrolado. Começa-se a divulgar estatísticas de como o trânsito em
Curitiba piorou nos últimos dias e como o nível de infrações está subindo. O dis-
curso coloca a culpa, pelo caos do trânsito, noTribunal. Se pelomenos os desem-
bargadores tivessemavisado, dadoumperíodoparaqueoMunicípio seadequas-
se, quem sabe a URBS não poderia continuar multando por mais alguns meses?
Não, não poderia.
A decisão é correta e não é surpresa. Há anos não havia exemplomelhor de feri-
mento à moralidade administrativa, nos bancos das faculdades de direito da ca-
pital, do que a aplicação de multas de trânsito por uma empresa com participa-
ção de capital privado, ainda quemínima. Difícil achar exemplomais fácil de uma
inconstitucionalidade tão evidente. Provocado, o TJ não teve saída. Conseguiu o
milagre de tentar não provocar a anulação das penalidades já aplicadas – o que,
certamente, será contestado. Nossa incompetência, enquanto cidadãos no trân-
sito, também se manifesta na nossa incompetência para organizar nosso apara-
to administrativo de fscalização do trânsito. Nosso modelo foi anulado porque
foi construído de forma incompetente. E agora não temos agentes competen-
tes para nos punir por nossa incompetência. Somos incompetentes até para isso:
Para fscalizarmos nossa própria incompetência!
André Folloni é doutor em Direito, professor da PUCPR e advogado do escritório Ma-
rins Bertoldi Advogados Associados de Curitiba
Por André Folloni