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Do que se fala? Do objetivo de se conhecer por meio de um só flanco, de um leito no
qual outrora germinava vegetação, a humanização possível por meio da exploração
histórica e dos frutos da dialética. Ainda que o curso d’água temporariamente tenha
cessado, nas camadas menos profundas, menos rochosas, há sempre a vida e, nela, a
motivação e a orientação para perguntar sobre as condições da vida, não para esta-
bilizar, não para emprestar precisão conceitual, não para tão só diagnosticar no deta-
lhe teórico talvez o equívoco formal, o vacilo terminológico ou, mais singelamente, o
fraseado menos sintético, isso porque o volume e a retórica é que instituem direitos
e não o trabalho e a riqueza econômica, os quais se contrariam e se sintetizam na dia-
lética de uma experiência mais pujante, na qual se capturam as realidades históricas
por sua vez conectadas às sinuosidades da política.
Os juristas escritores se dissipam entre si e nas interpretações de um tempo no qual
se vive a profusão de textos e de desenvolvimentos ‘teóricos’ os quais articulam o
hermetismo desses mesmos textos. Estes textos se entrecruzam, remetem uns aos
outros, se superpõem, se prestam homenagens, se deixam penetrar por meio da in-
questionada ação de mostrar algo sem demonstrar nada. Autores e textos se confron-
tam, se absorvem, se mimetizam, se reduzem e não é possível distinguir o comilão
verdadeiro que está sentado diante do comilão desenhado. Todos parecem favorá-
veis, heroicos defensores, convictos seres humanos que detém o DNA programado
para crer e substancializar, por meio de palavras, os mecanismos inovadores os quais
tornam existentes os direitos. Foi e é assim, por meio de duas afirmações sérias e con-
sistentemente elaboradas que se dá a construção singela de premissas. Os lugares
comuns, então, na e para as singularidades vividas pelos brasileiros são premissas,
são pontos de partida, são certezas e em parcela significativa dos textos nos quais a
dissipação derivada do confronto entre ‘verdade’ e ‘desenho’ é agravada pelos tra-
ços negativos, trágicos e também desafiadores do cotidiano institucional. Se releva-
das as heranças do regime autoritário, elas não guardariam relação com ‘verdade’ e
o ‘desenho’.
Entre ‘fato’ e ‘caricatura’, dado o hiato que reside na ausência de contemporaneidade
entre os intérpretes, a Constituição cidadã, que atingiu seus 25 anos de promulgação
em 5 de outubro de 2013, pode mesmo ser compreendida como a instituidora de ‘no-
vas’ relações entre o Estado brasileiro e a sociedade? No contexto dessas novas rela-
ções, por sua vez, tendo ele se ‘desenhado’ de forma historicamente expressiva, fo-
ram banidas as misérias e os anacronismos existentes nas mentalidades, nas práticas
e nas instituições autoritárias existentes no regime político constitucional anterior. O
Brasil e seus cidadãos puderam viver um novo tempo, uma nova república.
A relação equivocada entre direito e história contribui para o um diálogo que pode
auxiliar nos modos por meio dos quais se poderá refletir sobre a construção do direi-
to público, tendo-o como uma ciência do Estado e da política. As diferenciações entre
a dimensão do Estado, estas formadas em contextos históricos diversos no horizonte
da experiência europeia, bem como da política, compreendida com saber e prática,
também desdobrada em instituições voltadas para a preservação e manutenção do
Estado insinuam que as experiências constitucionais não podem ser, no seu todo, li-
das como autônomas. Por autonomia se compreende aqui a incompreensão entre os
fatores que estiveram próximos às injunções de poder, isso ao lado de circunstâncias
e singularidades econômicas, políticas, étnicas, territoriais e, no caso brasileiro, colo-
niais e imperiais. Sendo a experiência republicana curta em termos históricos e fratu-
rada por intervalos não democráticos, parece válida outra analogia, ainda que estas
sempre tragam riscos. Mas, ousadia à parte, como Karl Marx compreendia o Estado
alemão na segunda metade do século XIX?
Vale a advertência que neste período juristas escritores brasileiros colhem de forma
acrítica as políticas de Otto Von Bismarck, relacionando-as com conquistas sociais,
ainda que neste tempo o Estado alemão estivesse, diversamente, vivenciando uma
experiência de recrudescimento de suas classes mais conservadoras, sejam elas o
exército prussiano e a burguesia industrial. O Estado, que não passava de um despo-
tismo militar com armadura burocrática e blindagem policial era adornado de for-
mas parlamentares, com misturas de elementos feudais e influências burguesas. A
política, então, não era fictícia, muito ao contrário. Mas também não era expressão
do crescimento vertiginoso da indústria e da proletariado urbano. Foi o aumento de
leitores de jornais social democratas e a conquista de algumas cadeiras a mais no par-
lamento prussiano fatores que, ainda que pouco consistentes para uma transforma-
ção qualitativa da participação dos trabalhadores, foi condicionante para provocar
algumas novas orientações políticas das classes dirigentes. Na construção e forma-
ção dos direitos que dimensionam experiências políticas e constitucionais, renunciar
àquela curiosidade da qual se falou, a qual está ligada à exploração da história e das
possibilidades de reconstrução verdade, ainda que aí residam inúmeras limitações,
pode sacrificar os sentidos dessa mesma experiência. Mais ainda, as interpretações
das singularidades não podem ser capturadas no hoje sem a compreensão daquilo
que é constituinte do presente. Isto está além de jogos de linguagem e, por sua vez,
além de seus jogos de racionalidade. Nestes, também, há toda uma constituição, mas
também toda uma herança.
Eduardo Figueiredo, autor do livro Constitucionalismo e Democracia