Revista Ações Legais - page 74

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Deletar a Cracolândia
não é solução
ARTIGO
N
o filme Estamira, uma portadora de trans-
torno de saúde mental vive da coleta do que
pode ser aproveitado do monturo de coisas
que a sociedade de consumo rejeita. As cores de Es-
tamira se confundem com as cores das montanhas
de lixo, mas o seu discurso desviante denuncia as
contradições da norma social. Essas observações
podem servir para uma reflexão sobre o tratamento
que se tem dado ao que se convencionou chamar
de Cracolândia. Tratar aquele espaço como um de-
pósito de gente e tentar retirar da paisagem a de-
sarmonia da Cracolândia, por meio de destruição e
demolição, pode assemelhar-se à ideia de que o lixo
deve ser afastado dos nossos olhos.
Da mesma forma que nossa sociedade, pautada na
racionalidade do consumo, produz excedentes que
vão para o lixo, queremos esse lixo longe da nossa
rua. Podemos pensar que tratamos da mesma for-
ma aqueles que, em não atendendo à razão de ser
da sociedade, são considerados desviantes e devem
ser excluídos da nossa convivência. Estamira está
posta pela sociedade como um rejeito humano e a
ela resta viver do lixo. Tratar os usuários ou depen-
dentes de uma droga chamada crack (que, aliás, não
foram eles que inventaram) como rejeito social é
buscar a forma mais grave de violência que o Estado
pode fazer, que é a supressão do sujeito e de seus
direitos. Buscar na Justiça autorização para interna-
ção compulsória de forma indiscriminada é tentar
dar ao Estado a possibilidade do domínio pleno so-
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