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ARTIGO
Ficha Limpa: da regra à
exceção
Por Eduardo Faria Silva, doutor em
Direito
O
Supremo Tribunal Federal definiu válida a apli-
cação do prazo de oito anos de inelegibilida-
de para as pessoas que foramcondenadas por
abuso de poder econômico ou político, pela Justiça
Eleitoral, em período anterior à existência da Lei da
Ficha Limpa (LC n.º 135/2010). Na prática, o judiciário
retroage os efeitos da regra para data pretérita à exis-
tência da lei com o objetivo de afastar da vida pública
aqueles que foram condenados. Por um lado, a deci-
são se mostra positiva na pretensão de moralizar o
espaço público, por outro, cria mais uma exceção ca-
suística ao ordenamento jurídico. Esse quadromerece
uma atenção profunda da sociedade e demonstra a
necessidade do retorno dos magistrados aos clássicos
do direito.
Historicamente, construímos uma série de mecanis-
mo jurídicos para proteger os cidadãos do poder ab-
soluto do estamento estatal: o devido processo legal,
a ampla defesa, o contraditório, a presunção de ino-
cência, a irretroatividade das normas e a condenação
com base em tipificação expressamente descrita na
lei. Todos foram importantes avanços da sociedade
contra o arbítrio do investigador, do acusador e do
julgador do Estado. Assim, todo e qualquer indício de
ilegalidade deve ser processado nos marcos constitu-
cionalmente definidos e, se comprovada a violação da
lei, o réu será condenado por uma pena já definida na
legislação. Nesse sentido, os princípios e as regras de-
vemser amétrica para atuação do sistema de justiça e
a garantia da nossa liberdade.
Contudo, esses valores democráticos e republicanos
têmpassado ao largo das instituições políticas brasilei-
ras. O executivo e o legislativo estão em uma profun-
da crise de legitimidade, tanto pelas decisões políticas
tomadas quanto pelos crimes cometidos por muitos mandatários que ainda estão ocupando
cargos públicos. E o judiciário? Além de não abrir a sua caixa preta em relação aos crimes co-
metidos por magistrados, o STF aprofunda a crise decidindo contra texto expresso da Consti-
tuição Federal ao permitir a retroatividade da Lei da Ficha Limpa.
A força normativa da Constituição Federal só pode ser materializada se a sua guardiã – a Su-
prema Corte – tomar decisões com base no texto expresso e sem ativismos que contrariem
a legislação existente. Afastamento de senador, escuta de presidente da república por juiz de
primeirograu, ensino religioso emescola pública, proibiçãode peça de teatro e retroatividade
dos efeitos de lei são exemplos de decisões opostas ao texto constitucional e que geramuma
insegurança para toda sociedade. Essas exceções casuísticas abrem precedentes perigosos
para o presente e chamam para o poder judiciário uma competência de produção de normas
que não está no seu âmbito de atuação.
Em vez de esperar por “salvadores de togas”, a sociedade deve pressionar as instituições
para que atuem dentro dos marcos constitucionais. Do contrário, permitiremos que enten-
dimentos sem base constitucional sejam aplicados contra qualquer cidadão em um processo
judicial sob a justificativa do interesse público. Empleno ano de 2017, estaremos abrindomão
de conquistas democráticas e republicanas contra o abuso de poder do estado.
Não podemos ainda esquecer das milhares de ações que tramitam no poder judiciário e que
podem ser decididas a partir do que os magistrados têm por convicção sob fundamentos
de ordem moral alheios ao que consta no ordenamento. Além disso, o processo judicial não
pode ser visto como um reality show onde o resultado é guiado por índices de popularidade.
Há casos em que a população exigiu uma condenação, medidas judiciais cinematográficas
foram tomadas e, posteriormente, verificou-se que o réu era inocente. O processo deve ser
ummecanismo orientado por uma série de normas que garantam a segurança e a previsibili-
dade do caminho a ser percorrido, independentemente do resultado final a ser apresentado
na sentença.
O apoio gradativo da sociedade às decisões do judiciário que contrariam texto expresso da
Constituição Federal permite que o país inicie uma viagem noturna, sem carta de navega-
ção, em meio à neblina e em um mar agitado. Se o momento apresenta as condições para
a tempestade perfeita, o posicionamento da sociedade deveria ser no sentido de exigir que
o judiciário – no exercício dos freios e contrapesos – considere a Constituição Federal como
uma carta de navegação com força normativa para guiar o país na consolidação do Estado
Democrático de Direito.
Observar as regras clássicas do direito de forma universal sem criar exceções que corroem a
Constituição Federal é a perfeita materialização da concepção jurídica “a lei é para todos” –
inclusive para o judiciário.