ARTIGO
ARTIGO
58
59
Em tempos de clamor
por ditadura, o que é
democracia?
E
stamos vivendo um tempo em que muitos de
nós, operadores do Direito, não imaginaríamos:
um clamor popular pelo retorno da ditadura mi-
litar no Brasil. Sim, pelo retorno da ditadura militar
no Brasil.
Tem-se ouvido frases como: “naquele tempo não
havia corrupção”, “as crianças aprendiam na escola
conceitos de moral e cívica”, “cantava-se o hino na-
cional”, “governos democráticos promovem uma
grande desordem, afetando instituições como a família”, dentre outras. Os argumentos
são os mais variados possíveis, sendo que alguns deles beiram o absurdo. Outros podem
ser justificáveis pela insatisfação da (des)ordem política ou mesmo pela falta de conheci-
mento da perspectiva histórica, que remonta períodos nos quais houve uma alternância
entre ditadura e democracia. O fato é que hoje em dia parece ter sido incutida uma visão
romântica da ditadura na mente dos brasileiros que pedem uma intervenção militar.
Tendo em vista esse clamor intervencionista, afinal de contas, o que é mesmo democracia?
De acordo com TOURAINE (1996), democracia não pode se separar da ideia de povo, do
viver em sociedade, que garantias de que as liberdades sejam resguardadas de forma a
proteger a grande maioria da população – e não a minoria política.
No mesmo rumo, Giovanni SARTORI, em seu livro A teoria da democracia revisitada, uti-
liza uma definição pautada na negativa, asseverando que “democracia é um sistema no
qual ninguém pode escolher a si mesmo, ninguém pode investir a si mesmo com o poder
de governar e, por conseguinte, ninguém pode arrogar-se um poder incondicional e ilimi-
tado”.
Assim, democracia é um sistema no qual figura o todo, o povo, cujo poder não está cen-
tralizado nas mãos de uma única pessoa que o investiu, mas nas mãos da maioria da po-
Por Francismery Mocci e Polyana Lais
Majewski Caggiano, advogadas
pulação. Democracia é a não-ditadura, o não-totalitarismo, a não-autocracia.
Norberto BOBBIO nos fala que “o perfeito governo livre é aquele em que todos partici-
pam dos benefícios da liberdade”.
No governo democrático, as liberdades de pensamento devem ser ampliadas. Tanto as
liberdades quanto as garantias individuais não podem ser limitadas pelo poderio autori-
tário, mesmo que latente.
Politicamente, a ressalva que se coloca é que, enquanto ideias autoritárias devem ser re-
pelidas, também os ideais conservadores não podem se sobrepor aos do povo.
Uma das diferenças entre as constituições de um período ditatorial e de um período de-
mocrático é que, no primeiro, o Presidente detém poder soberano sobre os seus atos, já
no período democrático, seus atos são supervisionados pelos demais poderes, já que a
democracia requer o equilíbrio entre os poderes.
Fica claro que uma das mais marcantes características da democratização é a tentativa de
equilibrar os poderes do Estado, dando força àquele que anteriormente não tinha, equa-
lizando a divisão tripartite de poderes. A Constituição não deve oprimir nem suprimir a
vontade das maiorias. Ao contrário, deve preservá-las, sendo seu escopo maior a justiça
social.
O povo é responsável pela implementação de um regime político, das suas escolhas e de
suas características. E, essemesmo povomuitas vezes sequer sabe que é o titular legítimo
da soberania democrática e que deve exercê-la da melhor forma possível beneficiando-se
de suas escolhas.
Do exposto, conclui-se que o clamor popular por intervenção militar no Brasil, com res-
peito a quem a defenda, é o maior “tiro no pé” que o povo pode atribuir-se a si mesmo,
pois, inevitavelmente, vem acompanhada da perda das garantias e liberdades tão ardu-
amente conquistadas. Porém, “a democracia não protege nenhum poder dos indivíduos
de controlar seu próprio destino”, ou seja, cada um ainda tem a sua liberdade de escolha
e ela deve ser respeitada sem qualquer imposição ou arbitrariedades.
Assim, enquanto mantemos conosco essas liberdades, vamos dar um grande viva a elas.
Viva aos direitos conquistados: direito a um julgamento justo, aos direitos sociais, de não
ser torturado, à liberdade de expressão, de pensamento, de religião, de associação à pro-
priedade, à liberdade de imprensa, ao devido processo legal, à integridade física, à priva-
cidade, ao voto, enfim, direito à vida em sua plenitude.
Por fim, embora um caminho ainda muito longo deva ser traçado, um viva à Constituição
de 1988 e a seus 30 anos de conquistas!