Revista Ações Legais - page 10-11

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ESPECIAL - DIREITO DE FAMÍLIA
A afetividade como origem
da filiação
Por Ministério Público do Paraná - Fotos: Divulgação
Q
uando Vicente conheceu Bia, em 1988, ela já era mãe de Gizah, na época comqua-
tro anos de idade. Eles se casaram dois anos depois de iniciar o namoro e, com
o passar do tempo, a convivência fortaleceu os laços de afetividade não apenas
com a esposa, mas também com a menina. Logo, estabeleceu-se entre os dois uma rela-
ção típica de pai e filha. “Fui me apaixonando por essa filha que já veio pronta”, resume
Vicente, citando que um dos momentos mais emocionantes de sua vida foi quando, aos
11 anos, a garota o chamou de pai, pela primeira vez. Gizah, por sua vez, hoje com 31 anos,
conta que, desde muito cedo, não tinha dúvida de que Vicente também era seu pai. “O
Vicente foi minha referência paterna desde sempre.”
Histórias como a de Gizah e Vicente, em que os laços de afetividade passam a ter tanto
ou mais importância do que os sanguíneos, são bastante comuns e retratam o que se
denomina de filiação socioafetiva. No Brasil, não há regramento jurídico específico sobre
a questão, mas o Código Civil abre uma possibilidade, quando, no artigo 1.593, define as
relações de parentesco como “natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou
outra origem”.
Também a Constituição Federal, no § 6º do artigo 227, que trata do dever dos pais de cui-
dado com os filhos, declara que “os filhos, havi-
dos ou não da relação do casamento, ou por ado-
ção, terão os mesmos direitos e qualificações,
proibidas quaisquer designações discriminatórias
relativas à filiação”. Assim, ainda que nos dois re-
gramentos não conste o termo “socioafetivo”,
o entendimento a respeito da matéria encontra
respaldo em ambos.
Afetividade jurídica
Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, docente da gra-
duação e da pós-graduação da Universidade Fe-
deral do Paraná e da Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Paraná, destaca que as discussões sobre
relações de parentesco, para além da questão biológica, foram iniciadas no país na déca-
da de 1970, mas apenas após a Constituição de 1988 o termo “socioafetivo” começou a
ser empregado. “O grande marco doutrinário, que gerou uma verdadeira revolução no
tratamento jurídico do tema, foi a tese do professor Luiz Edson Fachin (hoje ministro do
Supremo Tribunal Federal), escrita nos anos 90, por meio da qual foram construídos e sis-
tematizados os parâmetros técnicos que permitiram à jurisprudência, especialmente na
década seguinte, acolher a socioafetividade como fonte de parentesco”, afirma. “Fachin
partiu de um conceito clássico: a posse de estado de filho, que era pensada apenas como
prova subsidiária do parentesco, como fonte de aparência e de presunções, para alçá-lo
ao patamar de critério constitutivo desse parentesco, mesmo à margem do vínculo bioló-
gico, tendo denominado esse parentesco de socioafetivo”, explica o professor.
Diretor do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), o advogado Ricardo Lucas
Calderón explica que a filiação socioafetiva consiste no reconhecimento do vínculo filial
com a pessoa que não é o ascendente ou descendente biológico. “Em outras palavras:
uma relação de filiação vivenciada na prática, por afeto, no dia a dia, com quem não seja
o pai ou a mãe biológicos”, diz. Ele destaca, porém, que isso vale para os casos em que
há comprovadamente uma relação filial (paterna/materna) entre as partes. “Há situações
em que um padrasto tem uma ligação pontual e saudável com o filho da companheira,
que não é seu filho, mas sem consolidar um laço de paternidade. O vínculo afetivo para
configurar uma filiação deve ser sólido, firme, de inequívoco parentesco”, ressalta.
Calderón salienta que, a despeito do avanço cientí-
fico para apuração de paternidade e filiação biológi-
cas, via exames de DNA, o afeto, no Direito da Famí-
lia, é visto hoje como um dos principais vetores dos
relacionamentos familiares. “O direito de família
brasileiro passou a reconhecer a afetividade como
um verdadeiro princípio, ou seja, a afetividade jurí-
dica vem sendo considerada relevante para as rela-
ções de parentesco. Portanto, é possível conceder
efeitos jurídicos para os relacionamentos familia-
res que estejam consolidados apenas por vínculos
afetivos”, afirma. Para tanto, a relação socioafetiva
deve ser reconhecida e declarada judicialmente, o
que possibilitará a alteração no registro de nasci-
mento da pessoa, com a inclusão do nome do pai
ou da mãe socioafetivos, bem como dos avós. O ju-
Professor da UFPR, Carlos Eduardo
Pianovski Ruzyk
Advogado Ricardo Lucas Calderón,
diretor do IBDFAM
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