Revista Ações Legais - page 74-75

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OPINIÃO
O entrincheiramento do
formalismo no ensino do Direito
Q
ual a chance de alguém vindo de uma
escola pública no início dos anos 2000
obter sucesso no vestibular da FUVEST?
ual a probabilidade de ingressar na Faculdade
deDireitodoLargoSãoFranciscosesequerhavia
professores de química e física contratados pela
minha Escola? Pois foi por ter de lidar com tais
dificuldades, e uma vontade imensa de mudar o
mundo, queaoentrar naFaculdadedeDireitoda
USP fui tomado por uma felicidade radiante.
As primeiras recordações acadêmicas, infelizmente, não são das melhores. Lembro-me de um
professor de primeiro semestre dizendo: “se querem fazer justiça esse não é seu lugar, ainda
dá tempo de procurar outro curso”. Aulas, em geral, enfadonhas, repetitivas, despreocupadas
com os alunos. Não havia um cuidado com o processo de aprendizagem. Alguns professores
não se acanhavam em espalhar aquelas folhas amareladas sobre a mesa e despudoradamen-
te lê-las. Sinceramente, as vezes me questionava se os professores realmente expunham suas
ideias para nós ou para eles mesmos. Será que percebiamque estávamos ali?
Adoutrina entende. Adoutrina fala.Mas queméessa tal de“doutrina”? A jurisprudênciamajori-
tária consolidou o entendimento. A jurisprudência é falha. Mas quemé essa tal de “jurisprudên-
cia”? Em meio a um vocabulário quase mágico tínhamos de tentar compreender o conteúdo
das aulas e dos textos. Sentia-me como na Bruzundanga de Lima Barreto, quando destaca as
características da literatura desse país imaginário: “Quanto mais incompreensível é ela, mais
admirado é o escritor que a escreve, por todos que não lhe entenderamo escrito”. Emuma das
aulas, certo professor, muito famoso e querido, desandou a fazer um discurso altissonante e
de efeito. Aplaudido no final do discurso eu fui acometido de um constrangimento lancinante
de mimmesmo, pois não havia entendido quase nada. Ao questionar meus colegas a respeito
do conteúdo da palestra percebi que ninguém havia entendido nada também. Então, por que
tantos aplausos? Por que esse deslumbramento pelo incompreensível?
Eis aqui uma das primeiras razões do entrincheiramento do formalismo: a reprodução compro-
metida. Os juristas reproduzem ideias dos seus mestres não porque necessariamente concor-
dam com elas, mas sim porque querem fazer parte de uma - outra ideia de Barreto - “nobreza
doutoral”. Ninguém questiona o status quo. No final das contas muitos só querem fazer parte
de uma elite que se reproduz pelas Faculdades e Universidades do país.
Umdos papéis da história pode ser a legitimação do presente ao se apontar que determinados
valores, consensos são praticamente parte da essência humana. Essa visão tem impactomuito
contundente no ensino. Eis aqui uma segunda razão do entrincheiramento do formalismo: a
naturalização dos processos de ensino do direito. Esse processo pode ser descrito da seguinte
forma: o professor fala, o aluno copia e na prova as respostas referem-se exatamente ao conte-
údo exposto em sala aula.
Em pleno 2019, com alunos que chegam às Universidade já nascidos no século XXI, o uso de
qualquer tipo de tecnologia em sala de aula ainda é um sacrilégio. Qualquer coisa para alémde
umaaulaexpositivapode ser interpretadocomoumdescaminho. Professor dodireitodeverda-
de sabe o Código de cor. Faz os alunos decorarema lei. Faz paráfrases do artigo x da lei y. Semi-
nários, estudos de caso, vídeos, cinema, literatura, role play, trabalhos emgrupo, exercícios em
sala, debates entre alunos, simulações, leitura de decisões dos Tribunais, dentre outras coisas,
parecemais uma tentativa do professor se desvincular da sua real obrigação: falar e falar.
Há quinze anos dedico-me à docência e à pesquisa. Nesse contexto há uma pergunta que me
incomoda enormemente: “Além de dar aula você trabalha?”. No mundo jurídico ser professor
é quase uma não-opção, ou seja, quem dá aula está lá por acaso ou porque não conseguiu ob-
ter uma carreiramelhor. Ninguémdisfarça os seus reais pensamentos: “Esse sujeito aí [no caso
eu] se fosse bommesmo seria juiz, promotor, defensor, advogado, procurador”... Eis aqui mais
uma razão do entrincheiramento: ser professor do direito é desvalorizado pelos seus próprios
pares. E digomais. Mesmo dentro da Academia o ofício docente é compreendido comomenos
refinado oumenos importante do que o de pesquisador. Essa desvalorização dificulta o profes-
sor pensar sobre seu próprio ofício, já que isso não parece ser mesmomuito relevante.
Recentemente fui procurado por uma instituição que pretende abrir um novo curso de di-
reito. A proposta é, em certa medida, radicalmente distinta de tudo o que conheço. Ao
questionar a instituição: “Quem dará essas aulas?”. Após um suspiro, seguiu-se a reposta:
“Esse será mesmo um problema”. A permanência do formalismo no ensino do direito está
arraigada a um complexo sistema socioeconômico e de poder que domina a entrada dos
quadros nas Escolas, nas Faculdades e Universidades. O entrincheiramento não me parece
ser metodológico, mas sim elitista.
Por Thiago Acca, doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP, professor da Faculdade de
Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie Alphaville e da FGV Direito-SP
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