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A nova lei da duplicata escritural,
avanço e chance perdida
N
odia21dedezembrode2018foi publicadaa lei 13.775,
que trouxe para o mundo jurídico a figura da “dupli-
cata sob a forma escritural”. A lei passará a produzir
efeitos em120dias, contados da data da publicação, e repre-
senta notável avanço no sentido de estabelecer um supor-
te eletrônico para as operações mercantis. Mas ao mesmo
tempo emque significa umpasso sobremaneira importante
para tornar a concessão do crédito mais eficiente no País,
e permitir a circulação dos títulos de forma mais segura, o
texto final da lei representou lamentável perda de oportuni-
dade.
Desde que Johannes Gutenberg inventou a imprensa, em
1450, até o advento dos computadores, o papel cumpriu
praticamente sozinho a função de dar suporte ao registro
de informações, o que nos permite divisar os documentos
jurídicos em dois grandes grupos: aqueles cujo suporte é o
papel, e os eletrônicos.
As duplicatas, no Brasil, têm previsão na Lei 5.474, editada
no longínquo anode 1968, e toda sua construção jurídica, assimcomo a dos princípios dodireito cam-
biário atinentes à sua circulação, sempre estiveramestreitamente associadas ao suporte papel.
Desde então, os documentos eletrônicos haviam sido apenas marginalmente referidos na legislação
brasileira, pela norma que criou a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira, ICP-Brasil, de 2001, e
pelo Código Civil, de 2002. Assim é que a evolução das relações comerciais e as crescentes dificulda-
des práticas queo lastropapel impunhamà desejada e necessária circulaçãodas duplicatasmercantis
e de serviços, em especial a partir dos anos 1990, deram ensejo a uma série de arranjos de ordem
pragmática, mas desprovidas de lastro legal.
Foi nesse contexto que a jurisprudência brasileira – não semuma ou outra vacilação – passou a chan-
celar a praxe do mercado e admitir a execução judicial contra o devedor inadimplente a despeito
do lastro papel da duplicata inadimplida (desde que preenchidos outros requisitos), assim como, no
âmbito do mercado de capitais, a Comissão de Valores Mobiliários passou igualmente a dispensar o
lastro papel para fins de aquisição do respectivo crédito por Fundo de Investimento emDireitos Cre-
ditórios – FIDC.
Anova lei muda esse cenário e traz expressa previsãopara o suporte eletrônico. Diz que as duplicatas
podem agora ser emitidas sob a forma escritural, para circulação como efeito comercial, mediante
lançamento emsistema eletrônico de escrituração gerido por entidades que exerçamessa atividade.
No âmbito do referido sistema eletrônico, devemocorrer a escrituração de tudo o quanto inerente à
duplicata, como apresentação, aceite, devolução, pagamento, transferência, endosso, aval, informa-
ções referentes à operação combase na qual foi emitida, e os ônus e gravames constituídos sobre as
duplicatas (artigo 4º.).
Aemissãodas duplicatas emsistema eletrônicode escrituraçãoveiopara conferirmaior segurança às
transações emelhorar o ambiente de negócios. Onovo diploma legal faz aumentar significativamen-
te a veracidade das operações que servem de lastro à emissão das duplicatas, eliminando o risco de
que ummesmo título seja usado como garantia mais de uma vez, eis que as comunicações de apre-
sentação, aceite e endosso, serão realizadas pelo gestor do sistema eletrônico; pequenas e médias
empresas, que têm maior dificuldade de comprovar idoneidade e solidez financeira para negociar
esses títulos, tendem a se beneficiar em razão da maior transparência conferida pelo novo sistema;
também o histórico de faturamento e operações, que agora ficará registrado nas infraestruturas do
mercado, gerará maior confiança em favor do empresário tomador de crédito; com a nova lei, pas-
sam a constar do registro da duplicata informações sobre as mercadorias a que se refere e forma de
pagamento; o título só será considerado quitado se essa forma for respeitada; condutas inidôneas,
amiúde vistas na militância jurídica, como por exemplo as que negam a natureza das operações, de-
pois de regularmente celebradas, ficarão mais restritas. Com essa maior segurança, será natural que
novos atores se interessempor esse nicho nomercado de crédito; como aumento de participantes,
as taxas podem se tornar progressivamente mais atrativas. São diversos os efeitos positivos espera-
dos.
Contudo, sem prejuízo de tais aspectos, é lamentável notar que mais uma vez o interesse comum
tenha sucumbido ao lobby setorial realizado no Congresso Nacional. É que o projeto original do de-
putado Julio Lopes trazia inovações mais agudas e interessantes. O texto original dispensava expres-
samente o protesto “das duplicatas e de outros títulos emitidos sob a forma escritural, bem como
dos títulos objeto de registro ou depósito centralizado, para todos os fins, inclusive para a prova da
inadimplência e do descumprimento de obrigação”. Dizia ainda que independeria de protesto “a co-
brança judicial da duplicata inadimplida emitida sob a forma escritural ou objeto de registro ou depó-
sito centralizado”. O protesto, na versão original, era uma faculdade, uma opção do credor, como
recomenda uma visão moderna e pragmática do direito. Omercado pede agilidade e eficiência, não
obrigações que não interessam a ninguém – exceto a quem lucra com uma burocracia no mais das
vezes inútil. Em geral, a obrigação de protestar é arcaica, obsoleta, inútil enfim. Com a evolução tec-
nológica em apreço, não faz nenhum sentido que o credor, já fustigado pelo inadimplemento do
devedor, tenha que cumprir a via crucis do protesto, tendo ainda, emmuitos Estados da Federação,
que pagar por isso antecipadamente! Infelizmente, esses pontos foram derrubados e em seu lugar
foram inseridos outros, que asseguraramamanutençãodo verdadeiro feudo cartorial comque ainda
temos que conviver. Em matéria de lastro eletrônico de transações comerciais, evoluímos no plano
legal. Mas fica a amarga sensação de chance perdida.
Por Cylmar Pitelli Teixeira Fortes,
advogado, mestre em Direito pela
Fundação Getúlio Vargas