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ARTIGO
Direito internacional e
punição das empresas por
atos de corrupção
Por Beatriz Dias Rizzo, advogada
criminal, mestre em ciências criminais e
criminologia pela Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra
A
esta altura, tem-se como certos dois aspec-
tos bastante importantes da corrupção nas
sociedades contemporâneas: (i) a sofistica-
ção trazida pela evolução tecnológica e pela expan-
são do mercado global (comercial e financeiro) e (ii)
a alteração na percepção que a sociedade tem da
corrupção, a partir do fortalecimento da consciência
do significado da cidadania.
Entretanto, o desenvolvimento tecnológico e o proces-
so de globalização acentuaram o aspecto econômico da
corrupção, tanto pela exposição do potencial lesivo da
corrupção tradicional, que passou a valer-se de transa-
ções financeiras internacionais, como pela revelação do
potencial que empresas transnacionais têmde desenvol-
ver estratégias de atuação pautadas em atos de corrup-
ção, sobretudo empaíses menos desenvolvidos, nos quais a regulamentação é mais frouxa e a
impunidade, mais elevada.
O Estado, por outro lado, não consegue alcançar uma regulação direta no âmbito das transa-
ções comerciais e financeiras. É neste estado de carência de um bom sistema de controle da
gestão pública que ganha relevância a ideia de compliance, através da utilização da autorregu-
lação e da prevenção, pelos próprios agentes econômicos, sobretudo nas suas interações com
o setor público.
A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção deMérida, de 2003), Decreto
n. 5687, de 31 de janeiro de 2006, estabelece, em seu Artigo 12, que os Estados Partes devem
adotarmedidas deprevenção à corrupçãono âmbitode suas relações comerciais das empresas
privadas e destas como setor público.
Dispõe tambémaConvençãoqueos EstadosPartesdevem incluir emseusordenamentos jurídi-
cos internos normas que permitame regulem a responsabilização penal, civil ou administrativa
das pessoas jurídicas (Artigo 26), por atos de corrupção, independentementeda responsabiliza-
ção das pessoas naturais.
Por ocasião da edição da Lei Anticorrupção, Lei n° 12.846, de 1º de agosto de 2013, nosso país
manteve-se fiel à tradição de deixar as pessoas jurídicas fora do âmbito da intervenção penal,
tratando de disciplinar procedimentos emedidas punitivas de responsabilização administrativa
e civil para empresas que pratiquematos de corrupção.
Embora não tenha natureza penal, os fatos e desvios previstos na norma brasileira têm uma
essência penal; estão em sua maioria ligados a condutas que, do ponto de vista da responsabi-
lização pessoal, representam infrações penais (Lei n° 12. 846/13, art.5º). A aplicação da lei às em-
presas, todavia, desperta cuidados decorrentes de dois aspectos do texto normativo.
A Lei Anticorrupção não prevê extinção de punibilidade criminal para os denunciantes e
permite celebração de acordo de leniência apenas pelo primeiro denunciante do ato de
corrupção. Como consequência, a empresa e as pessoas físicas que buscarem os órgãos da
administração para revelarem atos de corrupção estão confessando crimes e constituin-
do prova para uma subsequente condenação criminal, salvo se envolverem concomitante-
mente no acordo o Ministério Público, para dar a ele também as feições de um acordo de
colaboração premiada criminal.
Umsegundo aspectomal encaminhadopela norma é oda coexistência de diversas autoridades
com competências independentes para buscar reparação administrativa (no âmbito do Poder
Executivo Federal oMinistério da Transparência, antiga Controladoria Geral daUnião) e civil (no
âmbito Federal, a Advocacia Geral da União e oMinistério Público Federal).
A Lei n° 12.846/13, art.16, §3º diz expressamente que o acordo de leniência não exime a pes-
soa jurídica da obrigação de reparar o dano; no art. 18 estabelece que a responsabilização
da pessoa jurídica na esfera administrativa não afasta a possibilidade de sua responsabiliza-
ção na esfera judicial .
Analisados estes dois aspectos, não se estranha que o Ministério Público criminal tenha assu-
mindo a titularidade de praticamente todos os acordos de leniência – e não apenas das colabo-
rações premiadas - celebrados no âmbitodaOperação Lava Jato (atéomomento 10 acordos de
leniência; 158 de colaboração premiada e 1 termo de ajustamento de conduta) e que os denun-
ciantes colaboradores venhamenfrentado resistência de órgãos como oMinistério da Transpa-
rência (antiga Controladoria Geral da União), a Advocacia Geral da União, além do Tribunal de
Contas da União, em reconhecer a validade de acordos como um impedimento à instauração
de processos civis de reparação de danos e procedimentos administrativos no âmbito de suas
competências.