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ARTIGO
Planos de Saúde usam
Congresso para subverter lei
Por Ana Paula Souza Cury, advogada
especializada em Direito da Saúde
A
presentadapelaprimeiraveznoanode2006, tra-
mita hoje em regime de urgência na Câmara dos
Deputados o Projeto de Lei n. 7.419/2006, o qual
conta commais de uma centena de projetos apensados
e encontra-se capitaneado pela Comissão Especial sobre
Planos de Saúde.
A proposta, que se iniciou com o humilde escopo de in-
serir na Lei dos Planos de Saúde a necessidade de cober-
turadas despesas dos acompanhantes demenores de 18
anos, foi passandopor diversasmetamorfoses ecrescen-
doemcomplexidade e alcance, chegandoem2017 como
uma proposta apta a repaginar todo o setor de saúde su-
plementar, afetando os quase 50 milhões de usuários e
as dezenas de empresas que oferecemestes serviços.
Longe de ser vista como positiva aos usuários, a propos-
ta vem sendo duramente criticada por entidades de defesa do consumidor, já que entre as mu-
danças constam a possibilidade de se liberar o livre reajuste dos planos individuais e de acabar
como rolmínimode coberturasobrigatórias, aumentar a coparticipaçãodos usuários, criar uma
novadefiniçãodo rol decobertura como formade reduzir os custosdas empresas, eatémesmo
proibir aaplicaçãodoCódigodeDefesadoConsumidor nos contratosdeplanosde saúde, oque
significaria que as decisões judiciais em ações contra o setor não poderiam mais se basear no
Código, o qual protege o consumidor como a partemais fraca da relação.
Segundo estudo da Faculdade deMedicina da USP, divulgado em fevereiro deste ano, as ações
contra os planos de saúde, em São Paulo, aumentaram 631% entre 2011 e 2016, sendo que a ex-
clusão de cobertura, negando a realização ou o reembolso de procedimentos emedicamentos,
é a razão quemove quasemetade das demandas.
Para o relator do projeto, é preciso “racionalizar” o sistema de saúde suplementar, dando equi-
líbrio econômico-financeiro para as empresas. Em sua visão, o Judiciário “transborda” o que
determina a Constituição e passa obrigações que, a seu ver seriam estaduais, para os operado-
res privados. Alémdisso, acredita que amodernização do atendimentomédico, coma incorpo-
ração de novas tecnologias às coberturas, seria um ponto negativo ao impactar as operadoras
que, então, repassamos custos a todos os usuários e tornamos valores abusivos.
Ecoando o que pensa o relator – ou vice-versa –, o diretor-presidente da Unimed afirmou que o
crescimento da judicialização do setor prejudica o equilíbrio econômico financeiro das operado-
ras, que estariamoperando com reajustes abaixo da inflação do setor, bem como vêmperden-
do usuários.
É bemverdade que a recessão e o desemprego fizeramcomquemais de 1,5milhão de pessoas
deixassem de ter plano de saúde em 2016. Acontece que, mesmo assim, as operadoras con-
seguiram aumentar sua receita em 12%, e o lucro líquido em 66%, segundo dados da Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Mais que isso, o lucro obtido em 2016 representou um
crescimento de 70,6% quando comparado a 2015, tendência positiva observada desde o ano
2000, conforme se observa emmateriais disponibilizados pela ANS.
Comtais dados emmente, estranha-seadeclaraçãododiretor-executivoda Fenasaúde (federa-
ção com 23 grandes empresas do setor), que nos debates sobre o Projeto, ao defender as alte-
rações que privilegiamas operadoras, afirmou que as empresas fecharamas contas comdéficit
em seis dos últimos dez anos.
O que pode ajudar a melhor compreender a reforma são os dados da Justiça Eleitoral que de-
monstram que empresas do setor de saúde suplementar doaram R$ 54,9 milhões nas eleições
de 2014, oque contribuiuparaeleger 29deputados federais e3 senadores, dentreeles opróprio
Ministro da Saúde.
O setor de saúde suplementar vêm investindo de forma constante em publicações e debates
para moldar a opinião pública contra a judicialização de suas práticas, sempre – a despeito do
lucrocrescentee constante–alegandoqueaproteçãoea adequada cobertura aousuário impli-
caria emenorme aumentodos custos, quandonãona implosãodo setor. Agora, vendoo Judici-
áriovalorosamentecombater emfavor dos indivíduos, buscaoPoder Legislativopara subverter
a Lei e, assim, efetivamente criar as regras do jogo, visando impedir que o Judiciário aplique o
Direito a favor dos consumidores.
O cenário é desolador: custos integralmente repassados aos consumidores para manter a re-
muneração de acionistas, campanha pública contra a utilização do acesso ao Judiciário recém
garantido aos brasileiros, e agora utilização do Congresso para garantir o status quo.
Osetor realmenteexigeuma reforma,mas umaquevenhaemprol dos cidadãos, comverdadei-
ro equilíbrio entre o interesse privado e odireito à saúde, sendonecessárioque a sociedade e as
entidades de classe, principalmente a advocacia, empenhem-se emcombater a desvirtuaçãoda
Lei dos Planos de Saúde.