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ARTIGO
A lei em conflito
com crianças
I
nquestionavelmente, os graus de insegurança, vio-
lência e impunidade, no Brasil, são elevados. Tam-
bém nos parece indiscutível que os episódios de
desrespeito aos direitos . Também nos parece indis-
cutível que os episódios de desrespeito aos direitos
humanos fundamentais envolvendo adolescentes –
como autores ou vítimas –, inadmissíveis em uma so-
ciedade que se ambiciona civilizada, são frequentes.
Houve um recrudescimento da violência, sobretudo nos
grandes centros urbanos onde se constata um cresci-
mento exponencial das apreensões por atos infracionais, cada vez mais graves. Dados da Sub-
secretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente e do IPEA (Instituto de Pes-
quisa Econômica Aplicada) registram um aumento de 544,16%[1], entre os anos de 1996 e 2013,
na população de adolescentes em regime de privação de liberdade –medidas que pressupõe a
prática das mais graves infrações.
Aomesmotempo, conformeoNúcleodeEstudosdaViolênciadaUniversidadedeSãoPaulo, no
período de 1980 a 2006, o número de casos de violência policial, no Brasil, aumentou 56,25%[2].
É igualmente certo que os mecanismos de prevenção e punição da violência, de preserva-
ção da paz, e de garantia do respeito aos direitos dos menores de dezoito anos, tal como
empregados até o momento, foram incapazes de propiciar condições de harmonia e se-
gurança que afiancem uma saudável vida coletiva, e evitem a ocorrência de fatos graves
como os testemunhados recentemente.
Sem dúvida o aperfeiçoamento do sistema, lastreado em diagnósticos indubitáveis, exi-
ge mudanças no conjunto normativo que atinge, imediata ou mediatamente, a proteção
integral de crianças e adolescentes.
Mas infortunadamente o horizonte não exibe indicadores de alterações sistêmicas po-
sitivas e eficientes. Entretanto não é preciso aguardar o surgimento de mudanças legis-
lativas para aperfeiçoar a execução do sistema da proteção integral e implementar sua
doutrina de maneira efetiva e qualificada.
Sabidamente, muitos dos atos infracionais são fruto da cooptação feita por imputáveis,
que aliciammenores, induzindo-os, instigando-os e auxiliando-os a infracionar. Não é raro
que estes recrutamentos iniciem adolescentes no ambiente infracional que, posterior-
mente, terão extrema dificuldade de exonerar.
Nesteponto, família, sociedadeeEstado têmpapel fundamental adesempenhar. Oaliciamento
infracional encontra espaço e fertilidade onde o acompanhamento familiar, o amparo comuni-
tário e a rede de atendimento público deixaram lacunas.
E esta importante função se inicia dentro de cada lar, com a educação familiar. Refiro-me
àquela transmissão de valores e princípios, feita de uma geração para outra, que semeia,
desde os primeiros dias de vida, compreensão, solidariedade, respeito, consideração,
compaixão e limites, entre outros inúmeros conceitos sem os quais seria impossível – ou
muito difícil, no mínimo – a vida em sociedade.
Esta educação familiar, base de todo processo educativo do ser humano, é insubstituível.
Pode ser sedimentada, ampliada e fortalecida pela educação formal fornecida pelo Esta-
do (rede pública) ou sociedade (rede privada), mas é única e imprescindível. Nenhum Es-
tado do mundo, por mais aperfeiçoado que seja, conseguira suprir integral e plenamente
a ausência de uma mãe ou um pai.
Para permitir que este fundamental papel seja exercido pela família, dispomos de uma série
de ferramentas jurídicas e sociais, que envolvem a rede pública de atendimento à saúde, as-
sistência social e emprego; orientação, apoio e acompanhamento sócio-familiar; apoio sócio-
-educativo;inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e pro-
moçãoda família, da criança edoadolescente; requisiçãode tratamentomédico, psicológicoou
psiquiátrico, emregimehospitalarouambulatorial; inclusãoemprogramaoficial oucomunitário
deauxílio,orientaçãoetratamentoaalcoólatrasetoxicômanos;abrigoementidade;acolhimento
institucional; inclusão emprograma de acolhimento familiar; e colocação em família substituta.
Este conjunto de providências, se adotadas com eficiência e critério, auxiliarão na prevenção
de que crianças e adolescentes entrem em conflito com a Lei. A cooptação de menores e seu
aliciamento criminoso é um processo gradual e duradouro. Nenhuma pessoa aprende a dirigir,
manusear armas de fogo, mensurar entorpecentes comprecisão, desativar sistemas de rastre-
amento de veículos, entre outras malfeitorias, de umminuto para outro. Invariavelmente é ne-
cessário o incentivo, introdução e apoio de alguém jáminimamente versado no assunto, instru-
ções e treinamento, alémdo fornecimentode uma estruturamínima – sobretudonas hipóteses
de direção de veículos e manuseio de armas. Em síntese, para que uma criança se torne um
criminoso é preciso, dentre outros aspectos, que o aliciador invista na formação delinquencial.
O mesmo investimento pode e deve ser feito pela comunidade (sociedade), pela família
e pelo Estado para propiciar uma formação saudável destas mesmas crianças.
Além disso, é importante ter em mente que jamais acabaremos, de maneira absoluta e
definitiva, com os atos infracionais ou crimes. Infelizmente não há medida milagrosa que
nos permita acabar, vez por todas, com todas as infrações.
Entretanto, é possível concluir: o conflito com a lei somente germina e floresce onde,
dentre outros aspectos, a educação familiar falta.
Por Tiago de Toledo Rodrigues,
promotor de Justiça
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