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ARTIGO
O novo capítulo do
caso Cesare Battisti
Por Isabela Piacentini de Andrade
E
eis que a novela do caso Cesare Battisti, que
seacreditavaterminada, acabadeganharum
novo capítulo. Poupado da sua extradição
paraa Itáliaem2010por decisãodogovernobrasi-
leiro, o italiano se vê agora confrontado compos-
sibilidade de ser deportado, como determinou a
recente decisão da juíza federal titular da 20a Vara
do Distrito Federal. O italiano chegou a ser preso
nesta quinta-feira para fins de deportaçãomas foi
solto algumas horas depois, diante da concessão
de habeas corpus pelo TRF da 1ª Região.
A sentença da magistrada, passível de recurso,
determinou que Battisti está em situação irregu-
lar pois o ato do Conselho Nacional de Imigração
(CNI) que concedeu a Battisti o direito de perma-
nência no Brasil é nulo.A concessão teria violado
o artigo 7º, IV da lei 6.8015/80 (Estatuto do Estran-
geiro), segundooqual “não se concederá visto ao
estrangeiro condenado ou processado em outro
país por crime doloso, passível de extradição se-
gundo a lei brasileira”. Lembremos que Battisti foi
condenado pela justiça italiana à prisão perpétua
pelos quatro homicídios dolosos que cometeu
quando era integrante deum grupo armado que
atuou na Itáliano final dos anos 70. A extradição
do ex-ativista para este país foi deferida pelo Su-
premo Tribunal Federal (STF); entretanto, o tribu-
nal máximo reconheceu que “a decisão de deferi-
mento da extradição não vincula o Presidente da
República”, assentando “o caráter discricionário
do ato do Presidente da República de execução
da extradição”. No último dia de seu mandato
como Presidente, Lula negou a extradição de Bat-
tisti paraa Itália. AatitudedoBrasil foi considerada
pelo Estado italiano como uma violação do tratado de extradição emvigor entre os dois países,
enquanto que o STF confirmou sua legalidade evocando o argumento da soberania estatal.
Adecisãoda juíza federal suscita vários questionamentos deordem legal. Concentremo-nos em
dois deles. Em primeiro lugar, a deportação de Battisti implicaria sua extradição por via trans-
versa, o que é vedado pela lei brasileira (arts. 63 e 91, IV do Estatuto do Estrangeiro). O objetivo
da lei é impedir que um indivíduo cuja extradição tenha sido negada acabe sendo entregue por
outras vias ao Estado que a requereu. A juíza, entretanto, sustentou que a deportação “não
implica em afronta à decisão do presidente da República de não extradição, visto que não é
necessária a entrega do estrangeiro ao seu país de nacionalidade, no caso a Itália, podendo ser
para o país de procedência ou outro que consinta em recebê-lo”. Data venia, a deportação im-
plica, sim, afronta à decisão presidencial, na medida em que resultaria, em termos práticos, na
extradição de Battisti por via oblíqua. Ainda que a deportação não seja para a Itália, este país já
semanifestou no sentido de que pedirá a extradição do condenado ao Estado que o receber. A
frustração do pedido de extradição diante da negativa do ex-Presidente Lula seria dessa forma
contornada se o Brasil deportar Battisti para um Estado que posteriormente o extradite para a
Itália. Casoele seja enviado para a França, por exemplo, como sugerido no processo, este país
poderia entregá-lo imediatamente para a Itália tendo em vista que já há decisão francesa defe-
rindo a extradição do italiano. Foi essa decisão, aliás, que motivou a fuga de Battisti da França
para o Brasil em2004.
Em segundo lugar, saliente-se que não é de competência do Poder Judiciário decidir sobre a
deportação de estrangeiros irregulares no país. Muito mais do que a extradição, que responde
a um pedido de um Estado estrangeiro, a deportação e a expulsão de estrangeiros são, por
excelência,decisões discricionárias a serem tomadas pelo Poder Executivo. No seu aspecto in-
terno, a soberania de um Estado implica o poder de admitir ou recusar estrangeiros no seu ter-
ritório, e tais decisões são de cunho político, respondendo muitas vezes à política migratória
vigentenumEstadoemdeterminadomomentohistórico.Nãocompete, pois, aoJudiciário, “de-
ferir” uma deportação como fez o STF no caso da extradição (embora reconhecendo expres-
samente que a decisão final competia ao Executivo no exercício do seu poder discricionário), e
muitomenos ordenar a deportação. O Judiciário pode atuar para impedir uma deportação que
semostre contrária à lei, mas não para compelir o governo a deportar umestrangeiro irregular.
Portanto, independentemente de existir fundamento legal para a deportação, a sua efetivação
não é obrigatória visto tratar-se de ato discricionário do Estado. Em outras palavras, quando
reunidas as condições para a deportação de um estrangeiro, o Estado pode deportar, mas não
está obrigado a fazê-lo. Não há obrigação interna nem internacional nesse sentido. Assim, tal
qual nopedidode extradição, a palavra final sobre a deportaçãodeBattisti cabe aoExecutivo. E
pelas razões acima descritas, tal medida já não se revelamais uma alternativa legalmente viável.
Isabela Piacentini de Andrade é Doutora em
Direito pela Université Paris II (Panthéon-
Assas) e professora de Direito Internacional
na Universidade Positivo
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