ARTIGO
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A que(m) interessa a crítica
à homoparentalidade?
A
o início do século XX, o patrimônio jurídico bra-
sileiro agitava-se com a possibilidade de chega-
da de um Código Civil. Clóvis Beviláqua, redator
da primeira versão deste importante marco consagrado
em1916, costurou argumentos para adefesado trabalho
como indispensável para uma suposta guinada civilizató-
ria no país.
Em uma iniciativa imortalizada em texto escrito – “Em
defesa do Projeto de Código Civil Brasileiro”, de 1906 –
o autor explica meticulosamente as escolhas legislativas
tomadas. E quando trata da proibição do divórcio – que
só viria a ser permitido, entre nós, em 1977 – carrega o
tom para afirmar que a paz doméstica deve ser de ex-
trema delicadeza para que a “animalidade humana” não
vitime os filhos, estas “cândidas criaturas” que seriamar-
rastadas pelo desregramento de conduta parental caso
omatrimônio pudesse ser dissolvido.
Coma pacificação do divórcio comomedida necessária à
realização da dignidade humana, o discurso apocalíptico
de Clóvis Beviláqua se tornou, hoje, caricato.Mas, dentre
outras lições históricas, segue útil para evidenciar como
não é recente que no baralho político os atores centrais
saquem uma carta coringa – o bem-estar de crianças e adolescentes – para apoiarem as suas
próprias visões demundo.
Hoje, paradoxalmente, ora os pequenos compõem um espectro indefeso, que deve ser res-
guardadode determinadas práticas e ideias consideradas subversivas; ora compõemumespec-
tro ameaçador do qual devemos nos defender a qualquer custo. Por exemplo, ao se debater
redução demaioridade penal, forjam-se, com frequência, figuras assombrosas de delinquentes
mirins, em uma calorosa conclamação da sociedade para engatilhar as suas piores armas – e,
em geral, para mirá-las contra certa juventude marcada econômica e racialmente. Ao se deba-