Revista Ações Legais - page 53

ARTIGO
53
instâncias é de que a reação do Direito consiste em uma medida de coerção que obedece
a uma norma social organizada e delega a uma autoridade estabelecida anteriormente o
dever de avaliar a conduta criminosa. Já a moral não é socialmente organizada e não há
uma autoridade constituída formalmente para avaliar o caso. Por isso que, nesse aspecto,
segundo Kelsen, a religião se aproxima mais do Direito do que a moralidade, pois as reli-
giões são socialmente organizadas e conseguem ameaçar o assassino com a punição por
uma autoridade, ainda que essa seja sobre-humana (Deus), possuindo um caráter trans-
cendental. No entanto, a eficiência dessa coerção está atrelada à crença na existência de
tal autoridade.
Todavia, o que está em jogo aqui não é a eficiência dessas medidas de coerção, dessas
sanções, mas se elas são oriundas de uma ordem social ou não, uma vez que é essa ordem
social que garantirá, de fato, qual medida de coerção e qual sanção o assassino deverá
receber pela prática de seu delito. Kelsen atenta para o fato de que tanto o delito quanto
a sanção aplicada a esse delito devem ser determinados pela ordem jurídica e o indivíduo
que executa a sanção (juiz) atua como agente dessa ordem jurídica, como um represen-
tante da ordem social constituída, como um membro da comunidade social.
Em suma, todos os indivíduos de uma sociedade devem estar sujeitos a essa ordem so-
cial, pois é ela que tem a responsabilidade de regular o comportamento dos indivíduos.
Assim, uma sanção legal deve ser interpretada como um ato da comunidade jurídica. Já a
sanção religiosa deve ser entendida como uma sanção transcendental que tem na auto-
ridade sobre-humana sua validade e, por isso mesmo, não provém de uma ordem social.
Nesse caso, as punições e sanções oriundas das religiões não podem ser consideradas
válidas nessa comunidade porque pertencem a uma outra esfera de atuação (da esfera
celeste, transcendental), ou seja, de outro mundo que não o nosso.
Espero que as pessoas entendam que, a partir da contribuição de Kelsen, a decisão do
juiz Antonio Moreira Fernandes em autorizar a prática do aborto possui validade porque
ele é o representante de um órgão da comunidade, está respaldado pela juridicidade da
ordem social. As manifestações religiosas conservadoras das pessoas que protestaram
e chamaram a menina e o médico de assassino não têm validade na comunidade porque
não encontram respaldo nessa ordem social. Talvez possa encontrar sua validade em um
além mundo. Mas isso fica por conta da crença de cada um. Nossa comunidade precisa
do respaldo dessa ordem social para encontrar a segurança jurídica necessária e, assim
poder definir, de maneira válida, as sanções coercitivas que cada envolvido merece.
Por Antonio Djalma Braga Junior, filósofo
e historiador, doutor em Filosofia,
é professor da Escola de Direito e
Ciências Sociais da Universidade
Positivo
1...,43,44,45,46,47,48,49,50,51,52 54,55,56,57,58,59,60,61,62,63,...117
Powered by FlippingBook