Revista Ações Legais - page 110-111

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ARTIGO
Levar a sério o direito à
liberdade é incompatível
com a "cura gay"
Por Lawrence Estivalet de Mello,
advogado, professor e doutorando em
Direito \
O
caso da cura gay (ou “reorientação sexual”)
deve ser analisado à luz da liberdade pre-
vista na Constituição Federal (CF/88) e na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF).
De forma clássica, atribui-se a formulação jurídica
do direito à liberdade à Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789): "A liberdade consiste
em poder fazer tudo que não prejudica ao outro"
(art. 4º). Trata-se da compreensão de que cada um
pode, "prima facie", fazer ou deixar de fazer o que
quiser. "Prima facie", no entanto, significa "caso ne-
nhuma restrição ocorra". Não é o caso da liberdade
científica (CF/88, art. 5º, IX) ou da liberdade profis-
sional (CF/88, art. 5º, XIII).
A liberdade profissional informa que é livre o exercí-
cio de todo trabalho, desde que “atendidas as qua-
lificações profissionais que a lei estabelecer". Isto é,
existe uma reserva legal qualificada para o exercício
da profissão, não sendo possível a qualquer pessoa
realizar qualquer ofício, como quiser, sob risco de
fraude e ilicitude.
A liberdade científica, por outro lado, só existe quan-
do o pesquisador exercer ciência, e não culto ou fé,
sem que nesse exercício de ciênciaseja realizada dis-
criminação atentatória a direitos fundamentais (CF,
art. 5º, XLI). É por isso que o Supremo negou liberda-
de a S. Ellwanger, quando o autor editou livro racista,
eis que discriminação e liberdade jamais caminham juntas (STF, HC n. 82424). Em exame
dos fundamentos da decisão referente à cura gay - que permite a psicólogos a realização
de estudos e atendimentos para "(re)orientação sexual" -, sublinham-se equívocos em
três aspectos:
1. A liberdade científica não permite estudos preconceituosos, discriminatórios e anticien-
tíficos, como é o caso de qualquer pesquisa que busque "(re)orientação sexual", confor-
me compreensão da Organização Mundial da Saúde (1990), no mesmo sentido da leitura
de Freud sobre a homossexualidade (1935);
2. A liberdade profissional não permite tratamentos contrários à lei e a restrições ético
profissionais, o que torna obrigatória a observância da Resolução n. 01/2017 do Conselho
Federal de Psicologia, que proíbe qualquer ação que favoreça a patologização de com-
portamentos ou práticas homoeróticas (art. 3º);
3. As liberdades profissional e científica são limitadas por outros direitos fundamentais,
como o direito à liberdade sexual, no qual estão inclusas a intimidade sexual e a privacida-
de sexual (STF, ADPF n. 132, julgada por unanimidade). Ou seja, todo ataque à vida priva-
da sexual é uma violação a direito fundamental (CF, art. 5º, X). Atendimentos psicológicos
que realizem tal ilicitude são, em verdade, tortura psicológica e violência inadmissível e
repudiável.
Seria possível, ainda, realizar considerações sobre a impropriedade formal da decisão,
uma vez há absoluta impertinência na utilização da ação popular para tutelar a pretensão
dos autores. Todavia, para além desta questão técnica, é possível e necessário concluir
que a decisão é discriminatória, anticientífica, incompatível com o direito à liberdade e,
portanto, inconstitucional. Violar a vida privada para propor tratamento falso e estelio-
natário é ilegal, fraudulento e deve ser repudiado por todos que levam o direito a sério.
Foto: Divulgação
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