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ARTIGO
Tecnologia, indígenas e um
paradoxo no Brasil
Por Eduardo Faria Silva, doutor em
Direito, coordenador da pós-graduação
de Direito Constitucional e Democracia
da Universidade Positivo (UP).
T
emos acesso aos principais bens e serviços que a
revolução tecnológica produziu no século 21. Ao
alcance das mãos, o smartphone conectado à in-
ternet nos permite falar e ouvir, ver as horas e o clima,
jogar on-line e ler notícias, conhecer novos contatos e
marcar encontros, tirar selfies e gravar vídeos. Estamos
conectados aos cenários e às tendências mundiais em
tempo real. Recebemosmuitas informações e umclique
permite eternizar todos os momentos que desejamos.
Olhemos todas as imagens que recebemos nas últimas
semanas no celular e procuremos visualizar todas elas
como um filme exibido na internet. Essa infinidade de
comunicações passa por furacão, Temer, política, Moro,
Lava Jato, Trump, maluco, Venezuela, Joesley, delação,
Beto Richa, Quadro Negro, Gilmar Mendes, vergonha,
Neymar, fisco, Corinthians, corrupção, Brasileirão, Lula,
processo, Uruguai, maconha, Maduro, petróleo, Janot,
cerveja no bar, Putin, vermelho, Rio, vergonha, Kim
Jong-un, míssil, Queer, expressão, MBL, ódio, indígena,
massacre, Aécio, primo, Brasil, tarja-preta, Bolsonaro, in-
tolerância, Geddel emalas commilhões de reais.
Aproximemos as imagens quadro a quadro e procure-
mos ver, escutar, aprender, sentir, sorrir e chorar. Con-
seguimos? Não? Avancemos mais um pouco e olhemos
atentamente. E agora? Ainda não? É compreensível, pois
são muitos dados e pouco tempo para processar tudo
que foi recebido. Os nossos filtros não conseguem di-
mensionar e mensurar a importância das informações e
nos tornamos apáticos diante de fatos inaceitáveis.
Exemplo disso foramas cenas relacionadas aomassacre
dos indígenas, que recebeu menos destaque do que as notícias do futebol no fim de semana.
Caso o leitor ainda não tenha percebido, exterminamos umpovo isolado que vivia na Amazônia
e que nunca havia tido contato com os brancos. Esse povo indígena foi morto para que possa-
mos extrair ouro para os nossos anéis emadeira para as carvoarias comtrabalho análogo ao es-
cravo. Vamos reconstituir essas imagens – hoje quase tudo é possível tecnologicamente – e ver
o índio, escutar o som do facão cortando suas mãos, aprender a matar, sentir desprezo, sorrir
como extermínio e chorar pelo vazio. Oprogresso exige, o desenvolvimento cobra, amoderni-
dade comemora e a vida vai embora. Estamos no século 21!
As imagens sempredesfocadas sobreos indígenas precisamser reenquadradas paraquepossa-
mos perceber que cometemos umgenocídio contra crianças, mulheres e homens. Cometemos
umgenocídiocontraumpovo. Cometemos umgenocídiocontra ahumanidade. Somos umpaís
formado por desterrados. A composição inicial do Brasil, como apontou Darcy Ribeiro, resulta
do desenraizamento dos indígenas autóctones, dos negros africanos e dos colonos europeus.
Todos, sob uma falsa ideia de identidade nacional, estão em permanente conflito físico e psí-
quico. Todos estão numa batalha permanente ao longo dos séculos, na qual nunca haverá um
vencedor. Olhemos os 60mil executados nopaís em2017.Matar não foi e nunca será a solução.
Observamos apenas chacinas, miséria emuros altos espalhados pelas cidades.
Tal percepção nos permitirá reconhecer que perdemos a capacidade de aprender com os co-
nhecimentos milenares acumulados. Perdemos a capacidade de viver em comunidade. Perde-
mos a capacidade de sermos solidários. Perdemos a capacidade de aceitar que o povo indígena
massacradoqueria viver de forma isolada. E, tendoemvista a indiferença comoqueocorreuno
mês de agosto na reserva de Vale do Javar, noRio Jandiatuba, tambémperdemos a capacidade
de permitir que um povo viva integrado à natureza e de impedir que esta fosse transformada
emobjeto de consumo. Ao que parece, perdemos a essência da vida.
A situação emque vivemos expõe umparadoxo no Brasil: temos dispositivos móveis de última
geração captando imagens que reproduzem condutas do século 17. Precisamos produzir ima-
gens novas para ummundo novo. A combinação será possível apenas quando reconhecermos
quem somos, deixarmos de esconder a violência diária, agirmos para acolher e nos colocarmos
no lugar do outro.
A sétima economia domundo temrecursos suficientes para deixar a 79.ª posição no ranking do
desenvolvimentohumanodasNaçõesUnidas. Isso serápossível? Ahumanidade jámostrouque
o impossível é só aquilo que não podemos imaginar.
Foto: Divulgação