50
51
ARTIGO
Infração administrativa e
crime de responsabilidade
Por Amadeu Garrido de Paula - Foto Divulgação
T
alvez o aspecto mais trágico na atual passa-
gem brasileira consista no rompimento do di-
álogo social. Colegas contra colegas, amigos
contra amigos e na interioridade mais íntima das fa-
mílias. Consequências podem ser irreversíveis, en-
quanto as estrelas continuarão a iluminar as noites
e a política brasileira a tomar novos rumos, para o
bem ou para o mal. Ambos os grupos do bem e do
mal apostam no bem. Poderá ser tarde para reatar
vínculos e a harmonia. A dissidência vem da parca
análise de corretos conhecimentos epistemológi-
cos, ciência que se debruça sobre os métodos do
saber, provavelmente a mais intrincada de todas,
tanto que filosofia não significa sabedoria, mas
amizade à sabedoria. Somos uma experiência “sa-
piens” extremamente recente se considerarmos os
milhões e bilhões de anos cósmicos, se considera-
mos os fenômenos do universo em sua abrangên-
cia. Contudo, cada qual se considera dominador de
todas as percepções possíveis e concordar com o
outro é uma demonstração de fragilidade, de defi-
ciente educação ou de pálida cultura.
O homem somente se tornou homem graças à lin-
guagem, ferramenta de sua capacidade de comuni-
cação, de intercâmbio de ideias e opiniões e de for-
mação de consensos e dissensos. Se a vida humana
sobre a terra é considerada um milagre por muitos
sábios, porque permaneceu latente durante bilhões
de anos, semmanifestação e, repentinamente, num
período determinado e curto, veio à tona, por meio
da reprodução horizontal dos menores e menos complexos seres possíveis, a construção
da sociedade, em que cada qual cumpre papel diverso em relação de complementari-
dade, e tudo resulta no exercício de um conjunto de funções díspares que permite a so-
brevivência de todos, é um milagre maior ainda. O que se pode afirmar de duas crianças
nascidas simultaneamente, ambos com talentos especiais, exemplificativamente, uma
para ser um grande juiz da Suprema Corte e outra um dos melhores cirurgiões? Sabe-se
que os talentos são aperfeiçoados, mas sua origem antecede ao nascimento. Como não
é possível que juiz e cirurgião se entendam à primeira vista sobre determinados assuntos,
a linguagem criou uma riqueza incomensurável, cuja exploração em minúcias serve para
aproximar e construir.
Todavia, a linguagem também é fonte de paradoxos e do fenômeno que os linguistas
denominam de oximoro, locução que reúne palavras de sentido oposto, retórica antiga,
como no exemplo da expressão jurídica “silêncio eloquente”. A linguagemsurgiu enquan-
to esforço de todos os povos que habitavam a terra para se comunicarem, inclusive por
gestos. Tem um fundo comum, uma argamassa indiferenciada, porém, no evolver da his-
tória, ganhou espaço a “Torre de Babel”, de modo que temos, hoje, suas variadas expres-
sões, de país para país e de regiões para regiões, diferenciações cada vez mais cultivadas
pelo empenho de pais e mestres para transmitir seu modo de falar às novas gerações.
Dada a juventude da humanidade, acima referida, a linguagem não atingiu um ponto de
maturidade capaz de fornecer a todos a segurança de que necessitamos para adequar
convenientemente nossa consciência aos fatos objetivos, é dizer, aperfeiçoar nossa inte-
ligência para que equívocos sérios não comprometam nossa convivência. Por isso é que
muitos filólogos dizem que a linguagem é, também, um meio de ocultar e não de revelar
a verdade das coisas.
Ultrapassada essa longa, porém necessária digressão, não poderíamos deixar de nos re-
ferir a um discurso manifestado no Senado da República pelo Senador Antonio Anastasia,
que colegas seus, que se disseram embevecidos, aplaudiram como uma aula magistral de
direito constitucional concernente ao tema do momento, o impeachment ou impedimen-
to. Em tom didático e sem nenhuma afetação professoral, o parlamentar traçou um para-
lelo entre os crimes comuns, previstos no Código Penal, e o “crime de responsabilidade”,
de que é acusada a Presidente da República.
Permitimo-nos apenas alguns poucos acréscimos, que não foram feitos pelo autor da pe-
roração em razão do tempo limitado. Crime é uma conduta expressamente prevista, com
todas as letras, no Código Penal, contrária ao direito e imputável a alguém por culpa ou
dolo, que se caracterizam pela falta ou presença de propósito lesivo. Não há em nosso
ordenamento jurídico crime além dos descritos nas leis penais.