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O “roubo de contratos” na
pandemia covid-19 e suas
consequências jurídicas
A
balada pelos impactos da pandemia covid-19
mundo afora, a comunidade internacional foi no-
vamente surpreendida com a possível adoção de
medidas comerciais pelos Estados Unidos da América
direcionadas à aquisição de bens necessários para pre-
venir e prestar assistência à saúde de sua população –
inclusive aqueles já adquiridos por outras nações.
No dia 04 de abril de 2020, os EUA foram acusados de
redirecionar para si um conjunto de 200 mil máscaras
que teria como destino original a Alemanha, em um ato
descrito pelo ministro do interior alemão Andreas Gei-
seil como “pirataria moderna”. As máscaras de mode-
lo FFP2, que haviam sido encomendadas pela polícia de
Berlim, nunca chegaram ao destino final originalmente
acordado. Geisel afirmou que as máscaras foram “des-
viadas” para os EUA[1].
Casos semelhantes também foram reportados pela
França e pelo Brasil, e têm sido descritos como “roubo
de contratos” efetuados pelos norte-americanos, uma
vez que estes supostamente estariam fazendo propos-
tas financeiras mais altas do que as já firmadas entre os
países e fornecedores chineses.
É o que teria se dado em 03 de abril de 2020, em que
uma carga de 600 respiradores artificiais encomendada
de um fornecedor chinês por estados do nordeste bra-
sileiro não pôde embarcar do aeroporto de Miami, onde
fazia escala, para o Brasil.
Em nota enviada à imprensa brasileira, a Casa Civil da
Bahia informou que a operação de compra dos respira-
dores foi cancelada unilateralmente pelo vendedor. O valor final da compra, de R$ 42 milhões,
ainda não havia sido pago pelo governo baiano. Após investigações, teria sido confirmado que
os EUA ofereceram um valor mais alto pelos produtos quando estes aterrissaram em solo ame-
ricano – uma prática também apontada, por exemplo, pelo governo francês.[2]
No Brasil, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse na mesma semana que a
China havia recusado alguns pedidos de equipamentos brasileiros quando o governo dos EUA
enviou mais de 20 aviões de carga ao país para comprar os mesmos produtos. “As compras
que esperávamos concluir para poder abastecer o país nos foram retiradas”, disse o ex-minis-
tro em entrevista.[3]
Após acusação pela França de que os americanos estariam comprando máscaras destinadas a
outros países diretamente nas pistas dos aeroportos chineses, pagando em dinheiro vivo e em
valores de três a quatro vezes superiores ao preço original, os EUA se manifestaram negando
tais práticas. Todavia, autoridades francesas afirmaram a ocorrência desta prática reiterada e
expressaram o descontentamento em relação ao assunto[4].
Caso confirmada, trata-se de prática condenável adotada pelos EUA diante da uma crise hu-
manitária mundial que presenciamos. Esta situação impulsiona todos os Estados a buscarem
no mercado global equipamentos de proteção pessoal (EPP) para garantir o tratamento dos
que contraíram o vírus e a prevenção do contágio dos profissionais de saúde. Todas as enco-
mendas “roubadas” de terceiros, produzidas na China, poderão ser levadas à disputa com a
finalidade de reparar o dano aos compradores lesados por estes atos, após cuidadosa análise
das circunstâncias e instrumentos contratuais aplicáveis.
Uma das principais preocupações após tal comportamento dos EUA seria a disseminação de
tal prática por outros países, e não somente adstrita ao descumprimento dos contratos de
fornecimento dos EPP ou de equipamentos como respiradores, mas também dos respectivos
insumos e matéria-prima necessária para a produção destes.
A cadeia de suprimentos de matéria-prima para a fabricação de produtos é global, na qual
“time is of the essence”, isto é, o cumprimento dos prazos do contrato constitui a sua essên-
cia, e o seu descumprimento acarreta violação da obrigação principal do contrato. No presen-
te cenário de pandemia, é inquestionável a aplicação de referida lógica, já que os pacientes
acometidos por crises respiratórias e os seus médicos não podem tolerar atrasos nas entregas
– tampouco o podem os Estados que os protegem. Ainda, sob a perspectiva do comprador, ao
receber a confirmação da venda pelo vendedor, aquele passa a esperar a entrega, e não mais
seguir requerendo cotações e negociando nova entregas, aumentando ainda mais o atraso e o
impacto do descumprimento.
Traçado esse cenário, a questão que estas notas buscam analisar diz respeito ao descumpri-
mento do contrato de compra e venda internacional de mercadorias (EPPs ou equipamentos
de saúde).